quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O narciso

Isabel Clara Eugénia (1566-633) por Alonso Sanchez Coello

Esteve para ser rainha de Portugal. Tinha oito anos quando sua avó Catarina de Médicis, rainha viúva de França, iniciou negociações em Guadalupe (1574) para o seu casamento com o nosso desafortunado D. Sebastião, que logo se goraram à nascença. Filha de Isabel de Valois e de Filipe II de Espanha, Isabel Clara Eugénia perdeu a mãe aos dois anos mas foi soberanamente educada para o Poder: casou com o arquiduque Alberto, filho do imperador Maximiliano II e seu pai entregou-lhe a governação dos Países Baixos de que foi Governadora zelosa e enérgica. Deixou abundante documentação do seu próprio punho sobre o exercício da sua missão, hoje guardada na Biblioteca de Madrid.
Dei por acaso com este retrato que me fascinou pelo seu valor simbólico. É evidentemente o retrato de uma grande dama. Apesar da negra sobriedade quase monástica do traje, a rigidez do talhe aparece algo aliviada pela leveza da gola e dos punhos, aliás claramente ao gosto da época. A palidez também enobrece o conjunto: dá-lhe a magestática austeridade do Poder na pose e no definido e nítido traço das feições. Hierática e breve, suas mãos são mãos de posse... Provocador, sim, o macaquinho de estimação. Agressivo - ou, se fosse humano, escarninho - opõe-se ferozmente à aparente serenidade do todo, com um esgar de rebeldia quiçá simbolizando o descontentamento que grassava já pelo Império espanhol sob o jugo dos Áustrias. Mas, simbolicamente também, como para os súbditos, contido pelo engodo da goluseima que parece tasquinhar com ar matreiro ou, mais explícito ainda, preso ao pulso da dona por uma quase escondida corrente de oiro. Porém, presidindo ao conjunto, surpreendente na fragilidade com que pousa nos cabelos sombrios e quase esfumados, abre-se em estrela, um narciso. Duma naturalidade tão feminina, tão no avesso da composta dureza do quadro - um petalazinha dobrada como se a flor começasse a perder frescura ou tivesse sido posta ali por acaso, por capricho ou rebeldia. E vem-nos do fundo de todo aquele negro, numa viagem de séculos, o perfume doce e leve, subtil e todo feminino de uma redenção ou alegria breve.

sábado, 30 de outubro de 2010

O Cavaleiro Andante



O “CAVALEIRO ANDANTE” faz parte integrante das minhas mais queridas recordações de infância e foi uma fonte de exaltação para uma boa parte dos jovens da minha geração. Tratava-se de uma revista juvenil em banda desenhada, de publicação semanal, dirigida por Adolfo Simões Muller. O seu primeiro número, com a capa, a quatro cores (amarelo, azul, vermelho e verde), representava precisamente um cavaleiro medieval montado no seu corcel, com armadura, elmo e escudo, de lança em punho,  preparando-se para a “justa”. Sucedeu ao “Diabrete” e foi publicado entre 5 de Janeiro de 1952 – ainda eu não tinha 10 anos – e  15 de Agosto de 1962, com 556 números publicados. Os meus primos mais velhos recordavam também com saudade o “Mosquito”, o qual, no entanto, já não fez parte das minhas leituras de menino.
Associo o meu encantamento com o “Cavaleiro Andante” à cidade da Guarda, uma vez que me acompanhou até aos meus 14-15 anos, isto é, durante os últimos 5 anos que ali vivi. Contemporâneo do “Cavaleiro Andante”, era também publicado o “Mundo de Aventuras”, mais virado para mundos inter-galácticos, aventuras espaciais e para histórias de índole psicológica ou hipnótica que não me tocavam tanto. Alguns dos seus heróis favoritos eram o Flash Gordon e o Mandrake.
Tive, com o meu amigo Raul Nobre, apreciador do “Mundo de Aventuras”, grandes e acaloradas conversas acerca dos méritos relativos das duas revistas. Cada qual ficou na sua e eu mantive-me fiel, desde o primeiro número, ao “Cavaleiro Andante”, onde predominavam as aventuras na “pradaria”, de índios e cowboys, as histórias de cavalaria e de cruzados, de corsários e de tesouros escondidos, assim como as heroicidades de Tarzan, as aventuras misteriosas do Professor Mortimer e do Capitão Edgar[1], em séries inesquecíveis de E. P. Jacobs, como “O Enigma da Atlântida”, “A Marca Amarela” ou “O Mistério da “Grande Pirâmide”, além das extraordinárias e encantadoras façanhas do repórter Tintim, do Rom-Rom[2] e do Capitão Rosa[3], cujo encantamento pudemos reviver, mais de cinquenta anos depois -, com a sua publicação por iniciativa do Jornal “Público”.
O “Cavaleiro Andante” saía ao sábado e o comboio que trazia os jornais de Lisboa chegava à Guarda um pouco depois das 14 horas. Os jornais eram, então, transportados por uma camioneta que fazia o percurso da estação até à cidade, onde chegava, correndo tudo normalmente, pelas 15 horas. A essa hora já eu esperava impaciente a chegada da viatura, junto da “central de camionagem” (para utilizar a terminologia de hoje), perto da Igreja da Misericórdia, no largo fronteiro à paragem dos táxis. Logo que avistava a camioneta, seguia, sem demoras, para o Café Mondego, infelizmente já desaparecido, onde, no meu tempo, havia, à direita de quem entrava, um espaço reservado para a venda dos jornais e das revistas.
Era importante ficar colocado logo na primeira fila, junto ao balcão, por detrás do qual imperava um velhote rabugento, que tinha por hábito cuspir regularmente para o chão, coberto com serradura, ao mesmo tempo que abria, com um estilete, os maços e pacotes com os jornais acabados de transportar num carrinho de mão. Depois, para endireitar e alisar os jornais e as revistas, batia fortemente com eles, por várias vezes, sobre o balcão, após o que os arrumava nas prateleiras, deixando no balcão as publicações mais procuradas: os jornais desportivos (“A Bola”, o “Mundo Desportivo” e o “Record”), o “Diário de Notícias” e o “Século” – e também o “Cavaleiro Andante”.
Logo que recebia o meu exemplar, a impaciência era tanta que não se compadecia com os cerca de 15 minutos de percurso a pé até minha casa. Sentava-me logo, chovesse ou nevasse, no banco mais próximo do jardim contíguo ao “Café Mondego”, onde folheava a revista e lia, em diagonal, os episódios cuja continuação mais me emocionava. Só depois seguia, em passo acelerado, para casa, onde, bem instalado no meu quarto, lia e relia com toda a atenção todas as aventuras da publicação.
Regularmente, no Natal e na Páscoa, saíam, para além da publicação semanal, números especiais. Eram álbuns temáticos que contavam uma história com princípio, meio e fim (em geral versões ilustradas de grandes romances de aventuras).
Ainda revivo o encantamento e, até, o fascínio com que devorava essas aventuras. Lembro-me de, um dia, ter querido compartilhar com o meu pai o prazer que me tinha dado a leitura de um desses álbuns, que tinha por título “O Último Mohicano”. Quando, no dia seguinte, o meu pai mo devolveu, perguntei se tinha gostado. E recordo a minha desilusão, quando o meu pai, afectuosamente, me respondeu: “Sabes, meu filho, estas histórias em quadradinhos  já não são propriamente para a minha idade”. Na verdura dos meus onze anos, intuí, se calhar pela primeira vez, que a vida dos adultos devia ser muito, muito “chata”.


[1] ) Nome dado nas edições do “Cavaleiro Andante” ao “Capitão Francis Blake”.
[2] ) No me dado no “Cavaleiro Andante” ao cão Milu, companheiro e amigo do Tintim.
[3] ) Nos originais de Hergé, “Capitão Haddock”.

domingo, 3 de outubro de 2010

1 de Fevereiro, o dealbar da República

Texto de M. Lúcia G.M.
publicado em 2008 a propósito do centenário do Regicídio 
 
Sou republicana, mas reconheço que resisto mal ao “charme discreto (nem sempre, mas enfim ...) da monarquia”. Se bem que – convenhamos – ela já não seja o que era, é, pelo menos, um estado de afecto. Tem algo de securitário na perenidade dos seus titulares; é uma espécie de “líquido amniótico” que, na transitoriedade histórica, parece dar coesão à geografia sentimental da Nação. A transmissão dinástica garante tempo histórico “com assinatura” e, quando funciona bem, dá um certo ar de família, em que a “paternidade” do Rei serve de ressalva e garante. E depois há o espectáculo! E aí, a monarquia é exclusiva e supera em glamour qualquer República. Quando se mostram, nas suas glórias e nas suas misérias, Reis, Rainhas, Príncipes e afins, são ilustrações vivas de um mundo em escaparate, escolhidos e escrutinados, pelo coração, por aqueles que, não partilhando da mesma estrela, de certo modo se revêm neles, ou melhor, se projectam neles como num conto de fadas, lugar de todos os brilhos e de todos os faustos. E, com a graciosa magnanimidade de parecerem não atender aos custos. Até que ...
Tem toda esta prosa a ver com as minhas ligações ao primeiro de Fevereiro de 1908. Honni soit ...!
É que, além de ter na minha posse, luxuosamente guardada numa pastinha de calfe, uma carta autógrafa da Rainha D. Amélia, datada de 1 de Fevereiro de 1933, a agradecer a homenagem prestada ao Rei D. Carlos na passagem do 25º aniversário da sua morte, lembro, estreitamente ligadas com esta efeméride, duas histórias da minha infância e família.
Foi assim:
Deslocando-me com frequência, no início da década de cinquenta, com meus Pais, a Elvas, era paragem obrigatória do nosso clã familiar Vila Viçosa, para visitar o Palácio Ducal. Pelo menos duas vezes por ano percorríamos a mansão senhorial que, à época, por falta de meios financeiros e até humanos, não possuía o actual apuro de instalações e recheio, fruto de felizes intervenções que de então para cá foi sofrendo e lhe restituíram o antigo brilho. Nessa época, era eu menina, o Palácio era devotadamente cuidado por um reduzido número de funcionários e os visitantes não eram muito numerosos. Chegou a acontecer, quando lá íamos pelo Natal, sermos só nós a percorrer os aposentos então abertos ao público, acompanhados por um guarda/guia, que, num tom quase familiar, nos ia mostrando um pouco de tudo, ilustrando a visita com algumas historietas ou curiosas anedotas relacionadas com os espaços e os seus régios habitantes.
Havia um ponto alto na visita: era quando, no quarto de cama da Rainha D. Amélia, evocando o regicídio, o guarda abria com solenidade um gavetão da cómoda e retirava a camisa que o “Senhor D. Carlos”  vestia na tarde do atentado. Mostrava um orifício no cós do colarinho, atrás, na nuca. E apontava: “Estão a ver aqui o buraco da bala? E o sangue aqui todo à volta? Não voltou a ser lavada ...” E, de uma vez, até acrescentou: “E afinal não é azul ...” E riu-se mansamente. Eu era muito pequena e não percebi aquela do azul. O que eu via eram umas manchas empastadas cor de chocolate à volta de um buraco que até não era assim tão grande! A mim parecia-me que deveria ser muito maior. Coisa que se visse ... Para matar uma pessoa assim tão importante como era um Rei ...! Mas que me impressionava, impressionava. E um dia, muito furtivamente, estendi o dedo, e toquei de fugida e ao de leve na dobra da camisa. Logo o guarda admoestou: “Isto não é para mexer, menina! É só para ver!” E guardou-a ciosamente, de novo, na gaveta da cómoda de onde a tirara. Não muito tempo depois deixaram de a mostrar e creio que não mais voltaram a fazê-lo.
No entanto, ainda hoje me parece sentir nos dedos aquele choque de curiosidade e susto de uma tão bárbara visão de morte.
Afortunadamente no mesmo quarto, instalado num desvão à cabeceira da cama da Rainha, brilhava (literalmente, porque era de latão amarelo com colchoaria e enfeites em seda e veludo azul claro) o berço dos principezinhos ... E a vida falava mais alto!
*
A segunda história tem a ver com meu Avô.
Meu Avô era republicano. Confesso, reconhecido e louvado a seu tempo. Mas era um homem de coração grande, aberto por natureza e profissão – era médico – aos outros, a todos os outros. Era compassivo e compreensivo. Só convivia mal com a  hipocrisia  e a estupidez. No resto, militava ardentemente pela tolerância e pela concórdia. Foi nesse espírito que falou aos manifestantes que o foram vitoriar a sua casa aquando da implantação da República, pedindo que não se cometessem excessos nem retaliações. Diz-se que teria sido por isso que, na sua cidade, onde avultavam das maiores carências sociais e económicas do País e uma classe operária das mais numerosas e reivindicativas, não tenha havido distúrbios, perseguições e outros atropelos de monta tal como aconteceu pelo País fora.
Mas meu Avô tinha os seus gostos e os seus padrões estéticos. E tinha um hábito sagrado: quando havia festa em sua casa ou razão de especial alegria ou comemoração, mandava hastear a bandeira nacional no varandim da sua residência. Só que, com a República, a bandeira mudou. E meu Avô passou a ter um problema: apesar de todo o feliz simbolismo que lhe reconhecia, não conseguia aceitar a solução estética da bandeira verde rubra. O seu coração ficara com a bandeira azul e branca. Era mais “distinta”, dizia ele.
Foi republicano até à morte, festejou sempre, portas a dentro, o 5 de Outubro e outros aniversários. Só a bandeira deixou de aparecer na fachada de sua casa.




segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A Terra da minha Infância

Interior da Sé da Guarda

Nos verdes anos da minha instrução primária, quando frequentava a Escola do Asilo, na cidade da Guarda, confesso que tinha uma pequena vaidade, uma vaidadezinha ingénua mas irreprimível, quando me perguntavam qual a minha naturalidade. É que eu, ao contrário da quase totalidade dos meus colegas de classe, não tinha nascido na Guarda nem em qualquer das freguesias rurais do concelho. Eu era de Lisboa!
Passados poucos anos, quando, com os meus pais e o meu irmão, viemos viver para a capital (o que aconteceu nos meus 14 anos), fui modificando as minhas preferências e, iludindo a verdade do registo civil, passei a dizer-me natural da Guarda. É que Lisboa, belíssima capital pela qual nutro o maior carinho, é uma cidade que “é de todos mas não é de ninguém”. Não assim com a Guarda. Da Guarda são os que ali nasceram, mas também – o que é o meu caso – os que ali têm as suas raízes.
Na Guarda tinha o quintal, o leitura do “Cavaleiro Andante”, o frio do Inverno e a beleza dos poentes de Setembro. E tinha os meus livros, desde o “Pauvre Blaise”, da Condessa de Ségur, até aos “Salgaris”, aos “Júlios Vernes” e aos “Alexandres Dumas” e, depois, aos clássicos da nossa literatura, que lia apaixonadamente à sombra do castanheiro grande.
Na Guarda tinha a minha casa – um casarão da família, ao fundo da Rua 31 de Janeiro, então identificada como Rua D. Luís I. Era uma construção antiga, com um “pé direito” muito alto, fria e desprovida de aquecimentos, para além do proporcionado pela braseira da sala de estar, onde, no Inverno, se passava quase todo o dia, e pelo fogão de lenha, na cozinha.
 O quintal era o meu reino. Além de muito extenso, tinha os mais variados motivos de interesse: o “barroco da moura”, a “mina” (que era, na verdade, uma nascente, à qual se acedia por um corredor estreito e praticamente subterrâneo), a pedreira, o tanque e a bomba de puxar a água, o pinhal e as giestas, os castanheiros e as variadas espécies de  árvores de fruto. Ali passei, com os meus amigos, com o meu irmão e os meus primos dias muito felizes. Eram as lutas entre índios e cow-boys, eram as abordagens de flibusteiros e os combates de capa e espada, era o Ralph (pronunciávamos Rolfe), com o seu ar de galã juvenil dotado de uma natural destreza e elegância de gestos e movimentos  a reproduzir os truques que tinha visto fazer ao Errol Flynn, no último filme passado no Cine-Teatro, eram os jogos de futebol.
Neste rol de boas memórias se me figura ainda hoje a Guarda, berço que me foi de uma infância acarinhada e feliz.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Recado a uma janela

Poema e fotografia de M. Lúcia G.M.


Deixa entrar o Sol.
Deixa-me vê-lo acender a madrugada
saída em bruma do velho rio entorpecido
e vir pousar-me na almofada
alagando o chão
a colcha
o 'spelho antigo
Deixa entrar o Sol pelo meu quarto
como um grão-senhor de gesto brando
deixa-me beber-lhe a luz
até cegar
e ficar assim no seu abraço.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O TEMPO

"Se há uma realidade mutável, variando de pessoa para pessoa, dependente da personalidade de cada um, da sua disposição, da idade, da felicidade ou da angústia, da saúde ou da doença, do amor ou da desilusão, dos bons ou dos maus momentos, das perspectivas que nos acompanham ao longo do dia, se há uma realidade movediça, ligada à subjectividade de cada um de nós, essa realidade é o TEMPO".

Assim começa a minha crónica que vem hoje publicada no "jornal da minha terra". Se quiserem lê-la na íntegra, só terão de clicar aqui.

domingo, 12 de setembro de 2010

Retrato

Tem um sorriso moreno
de cigano feliz
os olhos picam-se de uma alegria
natural como a respiração que suspende
para se assegurar do seu sortilégio

Falta-lhe uma flor
algures no peito
ou um brinquedo nas mãos
ou umas botas mágicas
algo que o faça duende
                    ou feiticeiro
que nos embale o coração aflito
e nos faça acreditar
nas míticas praias do doce silêncio

Poema de M. Lúcia G.M.
Fotografia propriedade deste Blogue

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Procissão da Nossa Sra. da Praia - Praia da Maçãs - 29.08.2010

Andor do Sagrado Coração de Jesus

Andor da N.ª Senhora da Praia (Praia das Maçãs)

Andor de N.ª Senhora do Carmo

Andor do Menino Jesus

Andor de N.ª Senhora dos Mares (Azenhas do Mar)

Andor de N.ª Senhora do Carmo (transportada pelos surfistas da Praia)

Andor de N.ª Senhora da Praia (transportada por nadadores salvadores)

Estas fotografias são propriedade deste Blogue.

domingo, 29 de agosto de 2010

Saudade é

Fotografia e poema de M. Lúcia G.M.

Saudade é
o amor que resta
como o sol no fundo de um copo
a despedir-se da espuma
de um mar de verão
A saudade é líquida
e dourada
bebe-se como um sortilégio
que deixa sempre um fundo de ilusão

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Democracia, Liberdade de Imprensa e Sentido de Estado



Os governos – todos os governos – gostam do aplauso e detestam a crítica.

Os governos – todos os governos – gostariam de ter uma comunicação social mais colaborante e encomiástica.

Os governos – todos os governos – convivem mal com a liberdade de informação.

Mas só alguns governos são capazes de calar as vozes mais incómodas e mais críticas Fazem-no os governos dos países do terceiro mundo. Fazem-no os governos dos regimes ditatoriais. Num e noutro caso, com a violação dos direitos fundamentais daqueles que ousam criticar os “chefes”. Utilizando, em regra, a censura como arma e os mecanismos da repressão por polícias políticas como instrumento dissuasor.

Tentam também fazê-lo, por vezes, embora por outros métodos, alguns governantes em regimes democráticos. Nesses casos, quando mais duramente atacados através do exercício do direito à livre expressão, há governantes que soltam a sua indignação, que até pode ser compreensível ou mesmo justa, transformando-a, porém, em violentas censuras públicas, com utilização de expressões pouco próprias de quem governa.

Chamo a isso falta de “sentido de Estado”! Vou dar um exemplo.

O Presidente Richard Nixon foi um político profissional, experiente e bem sucedido em muitos aspectos. Negociou a retirada das forças dos Estados Unidos durante a guerra do Vietname, aproximou o seu país da República Popular da China e viajou até Moscovo, onde deu importante impulso às negociações com a União Soviética sobre a redução de armamento. Na política interna, travou dura luta contra a inflação, mediante o controlo de preços e salários e a redução dos gastos públicos.

Apesar disso, saiu humilhado da Casa Branca, na sequência do escândalo Watergate. Um aparentemente vulgar assalto a um edifício com esse nome, ocorrido em 1972, no período da campanha eleitoral que conduziu à reeleição de Nixon, esteve na origem de um escândalo político que acabou com a resignação do Presidente dois anos depois. O mérito da descoberta da verdade, ou seja, das ligações da Casa Branca ao assalto ao edifício Watergate e da descoberta de um sistema secreto de gravações, ficou a dever-se à persistência de dois jornalistas – Bob Woodward e Carl Bernstein – e à acção determinada e corajosa do seu jornal – o Washington Post. Nixon indignou-se, acusou a investigação, qualificando-a como infame e falsa, insultou os investigadores e o jornal. Ficaram célebres os seus acessos coléricos e a sua propensão para a utilização de vocabulário capaz de envergonhar um estivador. Negou, negou sempre a sua implicação e as suas responsabilidades.

Mas, dois anos volvidos, pouco antes da votação, pelo Congresso, do processo de impeachment que sobre ele pendia, viu-se obrigado a renunciar à presidência dos EUA. Ficou célebre a frase dramática que constituiu a sua última defesa: “I´m not a crook” (Eu não sou um vigarista). Na verdade, o Congresso, os tribunais e o procurador especial nomeado haviam feito prova das ligações da Casa Branca e do envolvimento do Presidente Nixon. Triste fim para um político inteligente, hábil, bem sucedido em múltiplos domínios, que não precisava do que aconteceu em Watergate para ser reeleito folgadamente contra o apagado candidato democrata George McGovern.

Faltava-lhe, porém, um atributo importante para um político: a compostura. E outro, fundamental para um líder: o sentido de Estado.

O sentido de Estado pressupõe respeito pelo cargo, sentido do dever, correcção, sobriedade, equilíbrio, ética pessoal. Em suma, o sentido de Estado implica aprumo e, sempre que necessário, capacidade de distanciamento em relação a companhias e amigos. Mas aqueles que me lerem estarão de acordo em que o que acabo de escrever deveria ter também plena aplicação neste nosso pequeno e pobre país.

domingo, 22 de agosto de 2010

A casa assombrada












Descobri-a num pinhal, solitária e pensativa. Cheirava, de longe, a abandono. Ao perto, a lixo húmido e suspeito. Na sua ruína, as janelas continuam porém como olhos fixos e vigilantes e a porta é uma boca aberta em O, como quem chama ou quem escarnece numa gargalhadinha infantil, meio curiosa.


Pelo flanco esquerdo sobe-lhe a escada, nítida mas cautelosa, a bater a uma porta-mistério. Cá fora, num poço entulhado a secura de uma água que se foi há muito. Mas, à direita, majestosos e tutelares, senhoriais guardiões na sua estatura imensa, dois cactos. Intactos e perfilados, protejem decerto um segredo ou um espírito vagabundo que ali se acolhe em noites desabridas. Não esqueci aquela casa e sei que um dia a vida lhe voltará, as janelas brilharão com vidrinhos de diamante e a porta fechar-se-á e deixará de dizer OH!


sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Políticos de "causas" e políticos de "interesses"

Acabo de ler um texto notável, da autoria de Luís Campos e Cunha, que chegou a ser, por quatro meses, ministro das Finanças de José Sócrates - cfr. "Público", 20 de Agosto, pág.33. Sob o título "VERGONHA", começa com uma afirmação, que não resisto a transcrever: "Há muita gente com vergonha da falta de vergonha que por aí impera". E termina do seguinte modo: "A justiça e a comunicação social têm um problema grave.O poder, em sentido lato, é dominado crescentemente por pessoas que não sentem nem têm vergonha. Os que ainda têm vergonha terão vida curta , no actual estado de vivência democrática".

Também eu, como o autor, tenho a percepção de que Portugal era menos corrupto há dez ou quinze anos do que é hoje em dia. E, fundamentando essa convicção, Campos e Cunha acrescenta: "Aliás, os indicadores internacionais de percepção da corrupção colocam neste momento Portugal numa situação vergonhosa. Por falta de vergonha de muitos agentes políticos".

Para já, limito-me a acrescentar o que me parece óbvio: no mínimo, exige-se de um estadista que respeite o juramento solene que proferiu no seu acto de posse e que respeite a Constituição, lei fundamental da República.

Mas a verdade é que se tem feito da política uma utilização perversa. Em vez de se “estar ao serviço”, o que conta é a perpetuação do poder e o favorecimento das cliques parasitas envolventes. Adopta-se a mentira como arma de combate e fabrica-se, nos gabinetes de imagem, uma marca postiça e hipócrita, capaz de enganar “tolos”.

São cada vez menos os políticos de "causas"; pelo contrário, germinam e multiplicam-se como cogumelos os "políticos de interesses" ou de "plástico". Por outro lado, desvalorizou-se um bem essencial e inestimável: o TRABALHO. Vive-se, cada vez mais, à sombra e na dependência dos padrinhos, na finança e nos partidos. Gente de bem, habituada a pensar pela sua cabeça, não quer misturar-se com esta "tralha triunfante" que, por aí milita... e enriquece. E o mais triste é que não se vê uma alternativa: se de um lado, chove, do outro troveja...

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

LIVRO VERMELHO II

O tema da "reeducação dos intelectuais" na China Vermelha, concebida e liderada pelo "Grande Timoneiro", o presidente Mao Zedong (Mao Tsé Tung), merece algumas considerações adicionais. Além de outras fontes, inspirei-me, ao escrever estas linhas, no belo romance do escritor sino-francês Dai Sijie "Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise", edições Gallimard, 2000. O pequeno texto que se segue dará notícia da sistemática e implacável repressão cultural exercida, sob a batuta dos grandes "educadores", instruídos pelos ensinamentos do "Livro Vermelho", contra quem quer que ousasse ter um pensamento próprio. A campanha, lançada nos fins da década de sessenta, pelo presidente Mao iria modificar profundamente a China. As universidades foram fechadas e os "jovens intelectuais", estudantes que haviam terminado os seus estudos secundários, foram enviados para a província, a fim de, na pureza da ruralidade, serem "reeducados" pelos camponeses pobres, seguidores fiéis e acéfalos das citações do Livro Vermelho".
A história relatada no romance gira em torno de dois jovens da cidade, de 17 e 18 anos, Luo e o narrador, que, em 1971, por serem considerados "intelectuais", foram enviados para as remotas "Montanhas da Fénix do Céu", na província de Sichuan, para serem reeducados pelo chefe da aldeia e pelos camponeses, gente rude, ignorante e afastada dos mais ténues sinais de civilização ou cultura. Luo era um notável contador de histórias, tendo, desse modo, caído nas boas graças do "chefe" e dos restantes montanheses. Entretanto, numa outra povoação, não muito distante, vivia uma jovem elegante e belíssima, filha do alfaiate da região. Trabalhava, ajudando o pai nas suas tarefas de corte e costura. Com naturalidade, Luo e a jovem modista apaixonaram-se e, sob os olhares desconfiados dos camponeses, passaram a manter um romance cada vez mais apaixonado.
Por sua vez, numa outra aldeia vizinha,  vivia um terceiro jovem, pesado e indolente, também sujeito ao regime de "reeducação", a quem os dois amigos chamavam o "caixa de óculos". Em troca de pequenos serviços prestados, o novo amigo comçou a ceder-lhes, por curtos períodos de tempo, sempre às escondidas, e apenas um de cada vez, alguns livros de Balzac.
Os dois amigos foram ficando cada vez mais desconfiados do conteúdo de uma mala que o "caixa de óculos" conservava sempre fechada, ciosamente resguardada de olhares estranhos. Resolveram, por isso, aproveitando a sua ausência, desvendar o seu conteúdo. E foi com a maior surpresa que depararam, no seu interior, com grandes títulos dos maiores nomes dos escritores do mundo ocidental: romances de Balzac,  Victor Hugo, Stendhal, Alexandre Dumas, Flaubert, Baudelaire, Rousseau, Tolstoi, Dostoievski, Gogol, e alguns de autores ingleses: Dickens, Kipling, Emily Bronté.
Que entusiasmo, que magia! "Com estes livros, a Pequena Costureira nunca mais voltará a ser uma simples montanhesa".
Seguiram-se tempos muito difíceis: a dura "reeducação" que, sob a cartilha inflexível do "Livro Vermelho", os dois amigos tiveram de suportar, deu causa a vicissitudes ultrajantes e desumanas, a violentas humilhações e torturas, a padecimentos físicos e psicológicos. Mas a tudo conseguiram resistir...
E o certo é que a leitura dos livros que, ainda assim, conseguiram escapar à purga dos "polícias da revolução" transformou a "pequena modista" numa mulher diferente: nasceu uma mulher liberta, disposta a conhecer o mundo, desejosa de abrir a vida e de alargar os horizontes, entreabertos, num primeiro momento, pelas palavras bebidas da boca de Luo e lidas, mais tarde, nas páginas mágicas dos livros "malditos". Não voltou a ser a mesma!  E foi esssa outra mulher, não mais inocente, mas, pelo contrário, curiosa e sedutora, aberta ao mundo e à sua tentação que, na hora da despedida, disse aos dois amigos: "Balzac fez-me compreender uma coisa: a beleza de uma mulher é um tesouro que não tem preço".

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Livro Vermelho

O nosso Presidente da República deixa-nos, por vezes, boquiabertos.
Com a sua personalidade "certinha" e professoral, tem tiradas de mestre-escola de província.
Vem isto a propósito da exortação que resolveu fazer, há dois ou três dias, pela televisão, com aquele ar sorridente, vagamente irónico, mas sempre solene, que o distingue, apelando aos comentaristas "estivais" (sic) a lerem o livro dos Doutores Vital Moreira e Gomes Canotilho sobre a matéria dos "poderes presidenciais". Levado por um entusiasmo quase febril pela "Constituição Anotada" dos dois Mestres de Coimbra, saiu-se com esta frase lapidar: "Esse era o livro vermelho dos meus antecessores e continua a ser o meu livro vermelho"! Passando agora por cima da publicidade descarada à obra dos referidos autores - no momento em que outros constitucionalistas de Lisboa (da UCP) acabam de lançar uma monumental 2ª edição ao seu 1º volume anotado da nossa Constituição, de um conjunto já publicado de 3 volumes, e em que também já contamos com um excelente comentário à "constituição  económica" coordenado pelo Doutor Paulo Otero (FDL) -, pergunto-me se Cavaco Silva conhece o sentido cultural e histórico normalmente associado à expressão "livro vermelho". Qualquer cidadão medianamente culto sabe que se trata da colectânea de citações do ex-Presidente da República Popular da China, Mao Tsé-Tung (427 citações divididas em 33 capítulos), tendo constituído uma forma de culto da sua personalidade.
O "livro vermelho" é o segundo livro mais vendido na história apenas atrás da Bíblia Sagrada, tendo tido cerca de 900 milhões de cópias impressas.
A sua enorme popularidade esteve ligada ao facto de o mesmo representar uma exigência para todos os cidadãos chineses, obrigados a possui-lo durante da Revolução Cultural, sendo obrigatória a sua leitura, nas escolas ou no mercado de trabalho, durante horas diárias. O símbolo de repressão em que se converteu fez milhares e milhares de vítimas entre os cidadãos chineses.
Com a subida ao poder de Deng Xiaoping, em 1978, a importância do "livro vermelho" entrou em franco declínio.
Pergunto: o que é que o nosso Presidente da República quis dizer ao afirmar que a obra dos constitucionalistas de Coimbra, ao menos, no capítulo respeitante aos poderes presidenciais continuava a ser o seu "livro vermelho"? E não terá sido um manifesto abuso pretender que também esse teria sido o "livro vermelho" dos seus antecessores António Ramalho Eanes, Mário Soares ou Jorge Sampaio? E não seria de esperar de um professor universitário uma particular aversão a argumentos de autoridade que, por definição, matam a discussão e o diálogo democrático?