quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O narciso

Isabel Clara Eugénia (1566-633) por Alonso Sanchez Coello

Esteve para ser rainha de Portugal. Tinha oito anos quando sua avó Catarina de Médicis, rainha viúva de França, iniciou negociações em Guadalupe (1574) para o seu casamento com o nosso desafortunado D. Sebastião, que logo se goraram à nascença. Filha de Isabel de Valois e de Filipe II de Espanha, Isabel Clara Eugénia perdeu a mãe aos dois anos mas foi soberanamente educada para o Poder: casou com o arquiduque Alberto, filho do imperador Maximiliano II e seu pai entregou-lhe a governação dos Países Baixos de que foi Governadora zelosa e enérgica. Deixou abundante documentação do seu próprio punho sobre o exercício da sua missão, hoje guardada na Biblioteca de Madrid.
Dei por acaso com este retrato que me fascinou pelo seu valor simbólico. É evidentemente o retrato de uma grande dama. Apesar da negra sobriedade quase monástica do traje, a rigidez do talhe aparece algo aliviada pela leveza da gola e dos punhos, aliás claramente ao gosto da época. A palidez também enobrece o conjunto: dá-lhe a magestática austeridade do Poder na pose e no definido e nítido traço das feições. Hierática e breve, suas mãos são mãos de posse... Provocador, sim, o macaquinho de estimação. Agressivo - ou, se fosse humano, escarninho - opõe-se ferozmente à aparente serenidade do todo, com um esgar de rebeldia quiçá simbolizando o descontentamento que grassava já pelo Império espanhol sob o jugo dos Áustrias. Mas, simbolicamente também, como para os súbditos, contido pelo engodo da goluseima que parece tasquinhar com ar matreiro ou, mais explícito ainda, preso ao pulso da dona por uma quase escondida corrente de oiro. Porém, presidindo ao conjunto, surpreendente na fragilidade com que pousa nos cabelos sombrios e quase esfumados, abre-se em estrela, um narciso. Duma naturalidade tão feminina, tão no avesso da composta dureza do quadro - um petalazinha dobrada como se a flor começasse a perder frescura ou tivesse sido posta ali por acaso, por capricho ou rebeldia. E vem-nos do fundo de todo aquele negro, numa viagem de séculos, o perfume doce e leve, subtil e todo feminino de uma redenção ou alegria breve.

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