domingo, 3 de outubro de 2010

1 de Fevereiro, o dealbar da República

Texto de M. Lúcia G.M.
publicado em 2008 a propósito do centenário do Regicídio 
 
Sou republicana, mas reconheço que resisto mal ao “charme discreto (nem sempre, mas enfim ...) da monarquia”. Se bem que – convenhamos – ela já não seja o que era, é, pelo menos, um estado de afecto. Tem algo de securitário na perenidade dos seus titulares; é uma espécie de “líquido amniótico” que, na transitoriedade histórica, parece dar coesão à geografia sentimental da Nação. A transmissão dinástica garante tempo histórico “com assinatura” e, quando funciona bem, dá um certo ar de família, em que a “paternidade” do Rei serve de ressalva e garante. E depois há o espectáculo! E aí, a monarquia é exclusiva e supera em glamour qualquer República. Quando se mostram, nas suas glórias e nas suas misérias, Reis, Rainhas, Príncipes e afins, são ilustrações vivas de um mundo em escaparate, escolhidos e escrutinados, pelo coração, por aqueles que, não partilhando da mesma estrela, de certo modo se revêm neles, ou melhor, se projectam neles como num conto de fadas, lugar de todos os brilhos e de todos os faustos. E, com a graciosa magnanimidade de parecerem não atender aos custos. Até que ...
Tem toda esta prosa a ver com as minhas ligações ao primeiro de Fevereiro de 1908. Honni soit ...!
É que, além de ter na minha posse, luxuosamente guardada numa pastinha de calfe, uma carta autógrafa da Rainha D. Amélia, datada de 1 de Fevereiro de 1933, a agradecer a homenagem prestada ao Rei D. Carlos na passagem do 25º aniversário da sua morte, lembro, estreitamente ligadas com esta efeméride, duas histórias da minha infância e família.
Foi assim:
Deslocando-me com frequência, no início da década de cinquenta, com meus Pais, a Elvas, era paragem obrigatória do nosso clã familiar Vila Viçosa, para visitar o Palácio Ducal. Pelo menos duas vezes por ano percorríamos a mansão senhorial que, à época, por falta de meios financeiros e até humanos, não possuía o actual apuro de instalações e recheio, fruto de felizes intervenções que de então para cá foi sofrendo e lhe restituíram o antigo brilho. Nessa época, era eu menina, o Palácio era devotadamente cuidado por um reduzido número de funcionários e os visitantes não eram muito numerosos. Chegou a acontecer, quando lá íamos pelo Natal, sermos só nós a percorrer os aposentos então abertos ao público, acompanhados por um guarda/guia, que, num tom quase familiar, nos ia mostrando um pouco de tudo, ilustrando a visita com algumas historietas ou curiosas anedotas relacionadas com os espaços e os seus régios habitantes.
Havia um ponto alto na visita: era quando, no quarto de cama da Rainha D. Amélia, evocando o regicídio, o guarda abria com solenidade um gavetão da cómoda e retirava a camisa que o “Senhor D. Carlos”  vestia na tarde do atentado. Mostrava um orifício no cós do colarinho, atrás, na nuca. E apontava: “Estão a ver aqui o buraco da bala? E o sangue aqui todo à volta? Não voltou a ser lavada ...” E, de uma vez, até acrescentou: “E afinal não é azul ...” E riu-se mansamente. Eu era muito pequena e não percebi aquela do azul. O que eu via eram umas manchas empastadas cor de chocolate à volta de um buraco que até não era assim tão grande! A mim parecia-me que deveria ser muito maior. Coisa que se visse ... Para matar uma pessoa assim tão importante como era um Rei ...! Mas que me impressionava, impressionava. E um dia, muito furtivamente, estendi o dedo, e toquei de fugida e ao de leve na dobra da camisa. Logo o guarda admoestou: “Isto não é para mexer, menina! É só para ver!” E guardou-a ciosamente, de novo, na gaveta da cómoda de onde a tirara. Não muito tempo depois deixaram de a mostrar e creio que não mais voltaram a fazê-lo.
No entanto, ainda hoje me parece sentir nos dedos aquele choque de curiosidade e susto de uma tão bárbara visão de morte.
Afortunadamente no mesmo quarto, instalado num desvão à cabeceira da cama da Rainha, brilhava (literalmente, porque era de latão amarelo com colchoaria e enfeites em seda e veludo azul claro) o berço dos principezinhos ... E a vida falava mais alto!
*
A segunda história tem a ver com meu Avô.
Meu Avô era republicano. Confesso, reconhecido e louvado a seu tempo. Mas era um homem de coração grande, aberto por natureza e profissão – era médico – aos outros, a todos os outros. Era compassivo e compreensivo. Só convivia mal com a  hipocrisia  e a estupidez. No resto, militava ardentemente pela tolerância e pela concórdia. Foi nesse espírito que falou aos manifestantes que o foram vitoriar a sua casa aquando da implantação da República, pedindo que não se cometessem excessos nem retaliações. Diz-se que teria sido por isso que, na sua cidade, onde avultavam das maiores carências sociais e económicas do País e uma classe operária das mais numerosas e reivindicativas, não tenha havido distúrbios, perseguições e outros atropelos de monta tal como aconteceu pelo País fora.
Mas meu Avô tinha os seus gostos e os seus padrões estéticos. E tinha um hábito sagrado: quando havia festa em sua casa ou razão de especial alegria ou comemoração, mandava hastear a bandeira nacional no varandim da sua residência. Só que, com a República, a bandeira mudou. E meu Avô passou a ter um problema: apesar de todo o feliz simbolismo que lhe reconhecia, não conseguia aceitar a solução estética da bandeira verde rubra. O seu coração ficara com a bandeira azul e branca. Era mais “distinta”, dizia ele.
Foi republicano até à morte, festejou sempre, portas a dentro, o 5 de Outubro e outros aniversários. Só a bandeira deixou de aparecer na fachada de sua casa.




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