sábado, 21 de maio de 2011

Maio, mês de Maria

por Maria Lúcia Garcia Marques               

Mês de Maio, mês de Maria.
Era assim na minha infância.
Minha Mãe rezava o terço todas as noites do mês com quem quisesse acompanhá-la. Eu sentava-me numa cadeirinha baixa, lá no quartinho dos fundos onde minha Mãe armara um pequeno oratório, e ficava a vê-la, na obscuridade recolhida, desfiando o seu terço de contas de vidro que balançavam suavemente ao movimento dos seus dedos lindos. A luz mansa duma lamparina de azeite punha reflexos ondulantes no rosto duma imagem de Nossa Senhora das Graças. Duas jarrinhas minúsculas com raminhos de gipsofila, dois candelabros de prata com suas velinhas de chama simétrica.
Não era um acto de adoração. Era um gesto simples de filial devoção, de piedade familiar, no verdadeiro e ancestral sentido que os romanos davam ao termo pietas e à celebração dos deuses lares.
Rezava-se pela paz – minha Mãe vivera as duas guerras mundiais – pela saúde da família, pelos estudos dos meninos, por alguma outra intenção mais particular (lembro-me de termos rezado pela vitória da equipa de que meu irmão era fã ...).
Terminava-se com a recitação da ladainha em louvor da Virgem Maria e ainda lembro o encantamento que algumas invocações deixaram no meu espírito infantil: mãe amável ..., virgem prudentíssima ..., rosa mística ..., torre de marfim ..., estrela da manhã ..., rainha da paz ...
No embalo da longa enumeração, éramos mulheres zelosas pelo bom fim de seus cuidados. Mulheres de trabalho nos seus diversos estatutos e idades. Na mesma cadência de deveres e de desejos que, bastante mais tarde, viria a encontrar nas palavras sofridas de Maria Velho da Costa, em Revolução e Mulheres (1976):
Elas são quatro milhões, o dia nasce, elas acendem o lume ...
Elas cantam baixinho a meio da noite a niná-los para que o homem não acorde ...
Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra ...
Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.
ELAS, sempre ELAS, na frente da luta, subindo e descendo a(s) “Calçada(s) de Carriche” deste mundo, nesse barómetro da vida d´ELAS que António Gedeão tão bem soube graduar.
ELA(S) – MARIA(S). O nome de mulher mais usado em Portugal. Que a História fixa: Marias – rainhas, Maria(s) da Fonte, Maria(s) Madalena(s). Ou que a linguagem popular aproveita: maria-rapaz, maria-cachucha, maria-mijona, maria-vai-com-as-outras, mariazinha-pé-de-salsa ...
E, a propósito desta última, uma historinha alegre que guardo no coração: era eu adolescente, magricela e “acneica”, vivendo no sobressalto de crescer e ser mulher (fundamentalmente apenas à espera de que dessem por mim ...), estreei umas meias novas, no “grito da moda”. Altas. Verdes-bandeira. Perna fina e pé ligeiro, livros abraçados ao peito, saia rodada apertadinha na cintura (verdadeiramente “de vespa” ...), lá ia eu rumo à lição de francês. Num passo corridinho – mai-las minhas meias verdes – pela borda do passeio. Foi quando cruzei um rapazola, “boina maruja ao lado/louca madeixa ao vento” (cito de cor Pedro Homem de Mello), que, de riso largo e olho aceso, me atirou: Olá, Mariazinha pé-de-salsa!
Ele vira as minhas meias de eleição! Indiferente se estava a gozar. Ele vira-ME ...!
Ainda hoje me rio de consolação!
Mês de Maio, mês de Maria, mês das Marias, e, já agora - porque não? - das mariazinhas-pé-de-salsa, que também são gente!

 Imagem de Nossa Senhora da Conceição, arte indo-portuguesa (Séc . XVII)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A Glicínia

Texto de Maria Lúcia Garcia Marques

Adriana sentou-se no murete. Não estava propriamente cansada. Estava apenas surpresa de não ter ainda sentido saudades daquele bem-estar que lhe vinha agora, envolto na brisa morna do fim da tarde, no deserto alentejano. Olhou em roda, placidamente, como sempre parece fazer-se tudo naquelas terras. Estava no meio do campo lavrado e o murete era um resto de uma conduta de água fora de uso, impecavelmente caiado, que corria pela linda do terreno até um velho poço entulhado e desesperadamente seco. No entanto, mão incógnita tinha posto um vaso com sardinheiras no rebordo do poço e o arco dos alcatruzes arruinados, ferrugento mas ainda altivamente no seu posto, parecia tutelar toda a paisagem, na segurança geométrica de que tudo começava e acabava como antigamente.
Adriana sentia o bafo da tarde na pele dos seus braços mal cobertos, mas embrulhava-se nele com um conforto e um afecto suave e leve, como se o dia parasse ali, naquela meia-luz requintada e lânguida. E a pouco e pouco, aquilo a que habitualmente chamava cansaço -  melhor dito, náusea do quotidiano entre paredes ( porque é preciso viver e viver tem os seus rituais e as suas burocracias) -  foi-lhe escorregando dos ombros e a respiração abriu-se-lhe ao cheiro poderoso da terra aberta, mas, levantando os olhos, também ao vôo das aves, essas ingénuas prègadoras da liberdade.
E viu também a glicínia. E devorou, como a abelha louca, o lilás da escadaria dos cachos. E encheu-se dessas lágrimas felizes que escorrem em glorioso pranto, em mágica cascata a esconder o soturno e sinuoso tronco. Cobrem-no, magnânimas, como tufos de seda, na maturidade da cor azulada, mas também na ridente juventude das suas flores ondulando na preguiça da tarde tépida.
E Adriana amou essa inesperada apoteose no ocaso que despontava e desvaneceu-se no seu fulgor devorador e mágico.


terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Dezembro da cor do arco-íris

                                                
      Texto de Maria Lúcia Garcia Marques
 
E cá estamos! É o fim do círculo de doze compassos, com as cores e os ritmos que o Destino ditou. E devia ser um fim em luz e cor, multiplicadas e abertas, como a cauda de um pavão altivo que se passeasse pelo chão da Eternidade, exibindo em leque as sete cores do espectro solar. O ARCO – ÍRIS, o “gran finale” da comédia do ano, o passeio triunfal no palco da Vida: um ano, 12 meses, 365 dias, 8760 horas, milhares de minutos e milhões de segundos. Um imenso arco vitorioso, recordando o ancestral pacto entre Deus e os Homens, celebrado entre Noé e o seu Senhor. Diz o Génesis:”Estando o arco nas nuvens / Eu ao vê-lo recordar-Me-ei da aliança eterna concluída entre Deus e todos os seres vivos de todas as espécies que há na Terra” (Gen. 9;16). Um fim em grande, para mais tarde recordar… Mas não foi! Porque este ano, parece que o arco-íris fez questão de dar vida à concepção, que também existe, de que é um sinal aziago, que traz desgraça consigo ao atrever-se a fazer a ponte entre a terra e o céu, entre os homens e os deuses. É que ,para alguns povos primitivos ,ele é “a serpente perigosa do céu” que,”de tempos a tempos, desliza para o firmamento para ir tomar um banho. Nessa altura, brilha esplendorosa com todas as cores. Mas quando despeja a água do seu banho, cai sobre a terra a chuva do sol, uma água extremamente funesta para os humanos”. Creio bem que foi este ano que choveu assim… Mas o Sol não se apaga e a chuva há-de secar. Entretanto, unamo-nos em círculo, tomemos as mãos uns dos outros, fechemos a roda do bem-querer e do bem-fazer -  a serpente engolirá a água do banho e nós teremos direito à outra metade do círculo da felicidade, perfeito e …irisado!
Feliz 2011!

Novembro cor de aço

                                                        
Texto de Maria Lúcia Garcia Marques
 … porque este foi polido, porque foi sofrido, dorido e esfregado até luzir. Novembro vai duro. Duro como aço, E tão bem como à do aço lhe assenta a cor: mais um brilho límpido e frio que parece vir do fundo do seu acontecer, um cinza entre o preto e branco mas com luz dentro. Tão estéril e sem sentimento que magoa e arrepia, como um aviso de grande perigo ou de dor próxima. Aço de adaga ou bisturí . Aço dúctil e resistente.
 Mistura de ferro e carbono, conhecido desde os egípcios vem sendo aperfeiçoado e crescentemente utilizado em múltiplas variantes, que vão desde as armas de guerra à arte mais sumptuária dos tempos modernos.
Mas onde eu gosto de o ver, na sua tão meticulosa quão complicada configuração, é no mecanismo dos relógios, dando forma a uma infinidade de peças e pecinhas, rodas e pêndulos de todos os tamanhos, em casamentos perfeitos de vibração e movimento. São corações que latejam e marcam o rodar do tempo. Olhando as entranhas dessas máquinas maravilhosas que são os relógios, se o fizermos com uma atenção bem fixa quase sentimos a vertigem do Tempo que se escoa e morre. “Não olhes muito para mim que perdes o teu tempo”, li uma vez, gravado nas costas de um relógio de bolso que pertenceu a meu avô. De facto, o Tempo só vale se for gasto em obras e não propriamente em vãs contemplações. Mas um relógio e a sua máquina são um mistério de amor: com ele trazemos no pulso, no bolso, ao peito, o bater do “nosso” tempo, daquele que nos coube viver e do qual há quem diga que, um dia, haveremos de dar contas…
E depois há os relógios” monumentais “, do Big Ben ao nosso modesto mas similar, na sua pontualidade infalível, relógio do Cais do Sodré. Para não falar da infindável multidão de tudo quanto é relógio de fachada, praça, torre ou igreja. E de tanto que duram e de tanto que vêem e de alto que estão, são sabedores e sábios. Foi assim que, numa das suas obras moralizantes, constante dos seus “ Apólogos Dialogais”, um dos nossos mais espectaculares homem de letras (e de outras coisas mais…) do séc. XVII, D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) pôs dois relógios a falar, numa peça a que deu o nome de “Relógios Falantes”. São interlocutores o Relógio da Cidade – ou das Chagas de Lisboa, e o Relógio da Aldeia – ou da vila de Belas. Encontram-se os dois numa oficina de serralheiro, ambos com desarranjo mecânico; e ambos tagarelam sobre coisas e defeitos da sociedade, criticando-os de acordo com os seus próprios pontos de vista. Mais sofisticados e ameneirados segundo o primeiro, mais rústicos e manhosos segundo o outro. E veja-se só o a propósito e a actualidade do seguinte passo da conversa:
 RELÓGIO DA ALDEIA – “Sempre ouvi dizer que era manha de ministros fazerem-se eles os Relógios da república, e fazerem que os mais dessem horas como relógio comum”.
 RELÓGIO DA CIDADE – “Tendes razão. E por isso um pintor astuto, mandando-se-lhe pintar o símbolo de um ministro, pintou o Relógio ao revés: a campainha para baixo e os pesos para cima”.
 RELÓGIO DA ALDEIA – “ Que queria dizer isso? Porventura, porque os ministros trazem sobre si os pesos e os pesares da república, e que a língua, assim no sino para baixo, é a que há-de andar por baixo de tudo sem aparecer?”
 RELÓGIO DA CIDADE – “ Não, por certo, mas porque diz lá o provérbio que a nós outros , os Relógios, todos nos crêem e nenhum nos adora; por isso o pintor, agudamente pintando um Relógio às avessas, quis dizer que aos ministros, todos os adoram mas ninguém os crê”.
E a propósito de relógios e ministros, uma história com graça: um ministro meu amigo, dos poucos coerentes e verdadeiros que conheço do depois do 25 de Abril, apesar de esforçado implementador de obras, era, irremediavelmente, um eterno atrasado. Um dia em que devia presidir a uma inauguração, fora de Lisboa, fez esperar o motorista do carro oficial tempos sem fim, antes de partirem. O motorista, que vinha do “antigamente”, não deixou de lhe fazer sentir, discretamente, o seu desagrado e durante o percurso procurou, esforçadanente, recuperar o atraso, o que fez com que chegassem apenas uma escassa meia hora mais tarde do que o previsto. No largo da Câmara Municipal onde aportaram, o entusiasmo era grande : uma pequena multidão aos “vivas” , meninas do liceu, uma banda de música em alta grita,  bombeiros em farda de gala e tudo, levaram o meu amigo ministro a comentar para o seu motorista : “Oh Snr Salgado, isto até parece o “antigamente”! Resposta:”Não parece não, Snr Ministro, porque “antigamente” os ministros saíam a horas!”  
 Mudam-se os tempos – tempos vão, tempos vêm…  
A Vida é um Relógio onde o Tempo vai rodando. E o Ano -  seu Mostrador.
Novembro já vai no 11, quase a fechar o círculo, à beirinha do fim d’ ano. Mas nem por isso a Vida pára e o Relógio lá continua: TIC.TAC…TIC.TAC…TIC.TAC…    

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O narciso

Isabel Clara Eugénia (1566-633) por Alonso Sanchez Coello

Esteve para ser rainha de Portugal. Tinha oito anos quando sua avó Catarina de Médicis, rainha viúva de França, iniciou negociações em Guadalupe (1574) para o seu casamento com o nosso desafortunado D. Sebastião, que logo se goraram à nascença. Filha de Isabel de Valois e de Filipe II de Espanha, Isabel Clara Eugénia perdeu a mãe aos dois anos mas foi soberanamente educada para o Poder: casou com o arquiduque Alberto, filho do imperador Maximiliano II e seu pai entregou-lhe a governação dos Países Baixos de que foi Governadora zelosa e enérgica. Deixou abundante documentação do seu próprio punho sobre o exercício da sua missão, hoje guardada na Biblioteca de Madrid.
Dei por acaso com este retrato que me fascinou pelo seu valor simbólico. É evidentemente o retrato de uma grande dama. Apesar da negra sobriedade quase monástica do traje, a rigidez do talhe aparece algo aliviada pela leveza da gola e dos punhos, aliás claramente ao gosto da época. A palidez também enobrece o conjunto: dá-lhe a magestática austeridade do Poder na pose e no definido e nítido traço das feições. Hierática e breve, suas mãos são mãos de posse... Provocador, sim, o macaquinho de estimação. Agressivo - ou, se fosse humano, escarninho - opõe-se ferozmente à aparente serenidade do todo, com um esgar de rebeldia quiçá simbolizando o descontentamento que grassava já pelo Império espanhol sob o jugo dos Áustrias. Mas, simbolicamente também, como para os súbditos, contido pelo engodo da goluseima que parece tasquinhar com ar matreiro ou, mais explícito ainda, preso ao pulso da dona por uma quase escondida corrente de oiro. Porém, presidindo ao conjunto, surpreendente na fragilidade com que pousa nos cabelos sombrios e quase esfumados, abre-se em estrela, um narciso. Duma naturalidade tão feminina, tão no avesso da composta dureza do quadro - um petalazinha dobrada como se a flor começasse a perder frescura ou tivesse sido posta ali por acaso, por capricho ou rebeldia. E vem-nos do fundo de todo aquele negro, numa viagem de séculos, o perfume doce e leve, subtil e todo feminino de uma redenção ou alegria breve.

sábado, 30 de outubro de 2010

O Cavaleiro Andante



O “CAVALEIRO ANDANTE” faz parte integrante das minhas mais queridas recordações de infância e foi uma fonte de exaltação para uma boa parte dos jovens da minha geração. Tratava-se de uma revista juvenil em banda desenhada, de publicação semanal, dirigida por Adolfo Simões Muller. O seu primeiro número, com a capa, a quatro cores (amarelo, azul, vermelho e verde), representava precisamente um cavaleiro medieval montado no seu corcel, com armadura, elmo e escudo, de lança em punho,  preparando-se para a “justa”. Sucedeu ao “Diabrete” e foi publicado entre 5 de Janeiro de 1952 – ainda eu não tinha 10 anos – e  15 de Agosto de 1962, com 556 números publicados. Os meus primos mais velhos recordavam também com saudade o “Mosquito”, o qual, no entanto, já não fez parte das minhas leituras de menino.
Associo o meu encantamento com o “Cavaleiro Andante” à cidade da Guarda, uma vez que me acompanhou até aos meus 14-15 anos, isto é, durante os últimos 5 anos que ali vivi. Contemporâneo do “Cavaleiro Andante”, era também publicado o “Mundo de Aventuras”, mais virado para mundos inter-galácticos, aventuras espaciais e para histórias de índole psicológica ou hipnótica que não me tocavam tanto. Alguns dos seus heróis favoritos eram o Flash Gordon e o Mandrake.
Tive, com o meu amigo Raul Nobre, apreciador do “Mundo de Aventuras”, grandes e acaloradas conversas acerca dos méritos relativos das duas revistas. Cada qual ficou na sua e eu mantive-me fiel, desde o primeiro número, ao “Cavaleiro Andante”, onde predominavam as aventuras na “pradaria”, de índios e cowboys, as histórias de cavalaria e de cruzados, de corsários e de tesouros escondidos, assim como as heroicidades de Tarzan, as aventuras misteriosas do Professor Mortimer e do Capitão Edgar[1], em séries inesquecíveis de E. P. Jacobs, como “O Enigma da Atlântida”, “A Marca Amarela” ou “O Mistério da “Grande Pirâmide”, além das extraordinárias e encantadoras façanhas do repórter Tintim, do Rom-Rom[2] e do Capitão Rosa[3], cujo encantamento pudemos reviver, mais de cinquenta anos depois -, com a sua publicação por iniciativa do Jornal “Público”.
O “Cavaleiro Andante” saía ao sábado e o comboio que trazia os jornais de Lisboa chegava à Guarda um pouco depois das 14 horas. Os jornais eram, então, transportados por uma camioneta que fazia o percurso da estação até à cidade, onde chegava, correndo tudo normalmente, pelas 15 horas. A essa hora já eu esperava impaciente a chegada da viatura, junto da “central de camionagem” (para utilizar a terminologia de hoje), perto da Igreja da Misericórdia, no largo fronteiro à paragem dos táxis. Logo que avistava a camioneta, seguia, sem demoras, para o Café Mondego, infelizmente já desaparecido, onde, no meu tempo, havia, à direita de quem entrava, um espaço reservado para a venda dos jornais e das revistas.
Era importante ficar colocado logo na primeira fila, junto ao balcão, por detrás do qual imperava um velhote rabugento, que tinha por hábito cuspir regularmente para o chão, coberto com serradura, ao mesmo tempo que abria, com um estilete, os maços e pacotes com os jornais acabados de transportar num carrinho de mão. Depois, para endireitar e alisar os jornais e as revistas, batia fortemente com eles, por várias vezes, sobre o balcão, após o que os arrumava nas prateleiras, deixando no balcão as publicações mais procuradas: os jornais desportivos (“A Bola”, o “Mundo Desportivo” e o “Record”), o “Diário de Notícias” e o “Século” – e também o “Cavaleiro Andante”.
Logo que recebia o meu exemplar, a impaciência era tanta que não se compadecia com os cerca de 15 minutos de percurso a pé até minha casa. Sentava-me logo, chovesse ou nevasse, no banco mais próximo do jardim contíguo ao “Café Mondego”, onde folheava a revista e lia, em diagonal, os episódios cuja continuação mais me emocionava. Só depois seguia, em passo acelerado, para casa, onde, bem instalado no meu quarto, lia e relia com toda a atenção todas as aventuras da publicação.
Regularmente, no Natal e na Páscoa, saíam, para além da publicação semanal, números especiais. Eram álbuns temáticos que contavam uma história com princípio, meio e fim (em geral versões ilustradas de grandes romances de aventuras).
Ainda revivo o encantamento e, até, o fascínio com que devorava essas aventuras. Lembro-me de, um dia, ter querido compartilhar com o meu pai o prazer que me tinha dado a leitura de um desses álbuns, que tinha por título “O Último Mohicano”. Quando, no dia seguinte, o meu pai mo devolveu, perguntei se tinha gostado. E recordo a minha desilusão, quando o meu pai, afectuosamente, me respondeu: “Sabes, meu filho, estas histórias em quadradinhos  já não são propriamente para a minha idade”. Na verdura dos meus onze anos, intuí, se calhar pela primeira vez, que a vida dos adultos devia ser muito, muito “chata”.


[1] ) Nome dado nas edições do “Cavaleiro Andante” ao “Capitão Francis Blake”.
[2] ) No me dado no “Cavaleiro Andante” ao cão Milu, companheiro e amigo do Tintim.
[3] ) Nos originais de Hergé, “Capitão Haddock”.

domingo, 3 de outubro de 2010

1 de Fevereiro, o dealbar da República

Texto de M. Lúcia G.M.
publicado em 2008 a propósito do centenário do Regicídio 
 
Sou republicana, mas reconheço que resisto mal ao “charme discreto (nem sempre, mas enfim ...) da monarquia”. Se bem que – convenhamos – ela já não seja o que era, é, pelo menos, um estado de afecto. Tem algo de securitário na perenidade dos seus titulares; é uma espécie de “líquido amniótico” que, na transitoriedade histórica, parece dar coesão à geografia sentimental da Nação. A transmissão dinástica garante tempo histórico “com assinatura” e, quando funciona bem, dá um certo ar de família, em que a “paternidade” do Rei serve de ressalva e garante. E depois há o espectáculo! E aí, a monarquia é exclusiva e supera em glamour qualquer República. Quando se mostram, nas suas glórias e nas suas misérias, Reis, Rainhas, Príncipes e afins, são ilustrações vivas de um mundo em escaparate, escolhidos e escrutinados, pelo coração, por aqueles que, não partilhando da mesma estrela, de certo modo se revêm neles, ou melhor, se projectam neles como num conto de fadas, lugar de todos os brilhos e de todos os faustos. E, com a graciosa magnanimidade de parecerem não atender aos custos. Até que ...
Tem toda esta prosa a ver com as minhas ligações ao primeiro de Fevereiro de 1908. Honni soit ...!
É que, além de ter na minha posse, luxuosamente guardada numa pastinha de calfe, uma carta autógrafa da Rainha D. Amélia, datada de 1 de Fevereiro de 1933, a agradecer a homenagem prestada ao Rei D. Carlos na passagem do 25º aniversário da sua morte, lembro, estreitamente ligadas com esta efeméride, duas histórias da minha infância e família.
Foi assim:
Deslocando-me com frequência, no início da década de cinquenta, com meus Pais, a Elvas, era paragem obrigatória do nosso clã familiar Vila Viçosa, para visitar o Palácio Ducal. Pelo menos duas vezes por ano percorríamos a mansão senhorial que, à época, por falta de meios financeiros e até humanos, não possuía o actual apuro de instalações e recheio, fruto de felizes intervenções que de então para cá foi sofrendo e lhe restituíram o antigo brilho. Nessa época, era eu menina, o Palácio era devotadamente cuidado por um reduzido número de funcionários e os visitantes não eram muito numerosos. Chegou a acontecer, quando lá íamos pelo Natal, sermos só nós a percorrer os aposentos então abertos ao público, acompanhados por um guarda/guia, que, num tom quase familiar, nos ia mostrando um pouco de tudo, ilustrando a visita com algumas historietas ou curiosas anedotas relacionadas com os espaços e os seus régios habitantes.
Havia um ponto alto na visita: era quando, no quarto de cama da Rainha D. Amélia, evocando o regicídio, o guarda abria com solenidade um gavetão da cómoda e retirava a camisa que o “Senhor D. Carlos”  vestia na tarde do atentado. Mostrava um orifício no cós do colarinho, atrás, na nuca. E apontava: “Estão a ver aqui o buraco da bala? E o sangue aqui todo à volta? Não voltou a ser lavada ...” E, de uma vez, até acrescentou: “E afinal não é azul ...” E riu-se mansamente. Eu era muito pequena e não percebi aquela do azul. O que eu via eram umas manchas empastadas cor de chocolate à volta de um buraco que até não era assim tão grande! A mim parecia-me que deveria ser muito maior. Coisa que se visse ... Para matar uma pessoa assim tão importante como era um Rei ...! Mas que me impressionava, impressionava. E um dia, muito furtivamente, estendi o dedo, e toquei de fugida e ao de leve na dobra da camisa. Logo o guarda admoestou: “Isto não é para mexer, menina! É só para ver!” E guardou-a ciosamente, de novo, na gaveta da cómoda de onde a tirara. Não muito tempo depois deixaram de a mostrar e creio que não mais voltaram a fazê-lo.
No entanto, ainda hoje me parece sentir nos dedos aquele choque de curiosidade e susto de uma tão bárbara visão de morte.
Afortunadamente no mesmo quarto, instalado num desvão à cabeceira da cama da Rainha, brilhava (literalmente, porque era de latão amarelo com colchoaria e enfeites em seda e veludo azul claro) o berço dos principezinhos ... E a vida falava mais alto!
*
A segunda história tem a ver com meu Avô.
Meu Avô era republicano. Confesso, reconhecido e louvado a seu tempo. Mas era um homem de coração grande, aberto por natureza e profissão – era médico – aos outros, a todos os outros. Era compassivo e compreensivo. Só convivia mal com a  hipocrisia  e a estupidez. No resto, militava ardentemente pela tolerância e pela concórdia. Foi nesse espírito que falou aos manifestantes que o foram vitoriar a sua casa aquando da implantação da República, pedindo que não se cometessem excessos nem retaliações. Diz-se que teria sido por isso que, na sua cidade, onde avultavam das maiores carências sociais e económicas do País e uma classe operária das mais numerosas e reivindicativas, não tenha havido distúrbios, perseguições e outros atropelos de monta tal como aconteceu pelo País fora.
Mas meu Avô tinha os seus gostos e os seus padrões estéticos. E tinha um hábito sagrado: quando havia festa em sua casa ou razão de especial alegria ou comemoração, mandava hastear a bandeira nacional no varandim da sua residência. Só que, com a República, a bandeira mudou. E meu Avô passou a ter um problema: apesar de todo o feliz simbolismo que lhe reconhecia, não conseguia aceitar a solução estética da bandeira verde rubra. O seu coração ficara com a bandeira azul e branca. Era mais “distinta”, dizia ele.
Foi republicano até à morte, festejou sempre, portas a dentro, o 5 de Outubro e outros aniversários. Só a bandeira deixou de aparecer na fachada de sua casa.