terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Novembro cor de aço

                                                        
Texto de Maria Lúcia Garcia Marques
 … porque este foi polido, porque foi sofrido, dorido e esfregado até luzir. Novembro vai duro. Duro como aço, E tão bem como à do aço lhe assenta a cor: mais um brilho límpido e frio que parece vir do fundo do seu acontecer, um cinza entre o preto e branco mas com luz dentro. Tão estéril e sem sentimento que magoa e arrepia, como um aviso de grande perigo ou de dor próxima. Aço de adaga ou bisturí . Aço dúctil e resistente.
 Mistura de ferro e carbono, conhecido desde os egípcios vem sendo aperfeiçoado e crescentemente utilizado em múltiplas variantes, que vão desde as armas de guerra à arte mais sumptuária dos tempos modernos.
Mas onde eu gosto de o ver, na sua tão meticulosa quão complicada configuração, é no mecanismo dos relógios, dando forma a uma infinidade de peças e pecinhas, rodas e pêndulos de todos os tamanhos, em casamentos perfeitos de vibração e movimento. São corações que latejam e marcam o rodar do tempo. Olhando as entranhas dessas máquinas maravilhosas que são os relógios, se o fizermos com uma atenção bem fixa quase sentimos a vertigem do Tempo que se escoa e morre. “Não olhes muito para mim que perdes o teu tempo”, li uma vez, gravado nas costas de um relógio de bolso que pertenceu a meu avô. De facto, o Tempo só vale se for gasto em obras e não propriamente em vãs contemplações. Mas um relógio e a sua máquina são um mistério de amor: com ele trazemos no pulso, no bolso, ao peito, o bater do “nosso” tempo, daquele que nos coube viver e do qual há quem diga que, um dia, haveremos de dar contas…
E depois há os relógios” monumentais “, do Big Ben ao nosso modesto mas similar, na sua pontualidade infalível, relógio do Cais do Sodré. Para não falar da infindável multidão de tudo quanto é relógio de fachada, praça, torre ou igreja. E de tanto que duram e de tanto que vêem e de alto que estão, são sabedores e sábios. Foi assim que, numa das suas obras moralizantes, constante dos seus “ Apólogos Dialogais”, um dos nossos mais espectaculares homem de letras (e de outras coisas mais…) do séc. XVII, D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) pôs dois relógios a falar, numa peça a que deu o nome de “Relógios Falantes”. São interlocutores o Relógio da Cidade – ou das Chagas de Lisboa, e o Relógio da Aldeia – ou da vila de Belas. Encontram-se os dois numa oficina de serralheiro, ambos com desarranjo mecânico; e ambos tagarelam sobre coisas e defeitos da sociedade, criticando-os de acordo com os seus próprios pontos de vista. Mais sofisticados e ameneirados segundo o primeiro, mais rústicos e manhosos segundo o outro. E veja-se só o a propósito e a actualidade do seguinte passo da conversa:
 RELÓGIO DA ALDEIA – “Sempre ouvi dizer que era manha de ministros fazerem-se eles os Relógios da república, e fazerem que os mais dessem horas como relógio comum”.
 RELÓGIO DA CIDADE – “Tendes razão. E por isso um pintor astuto, mandando-se-lhe pintar o símbolo de um ministro, pintou o Relógio ao revés: a campainha para baixo e os pesos para cima”.
 RELÓGIO DA ALDEIA – “ Que queria dizer isso? Porventura, porque os ministros trazem sobre si os pesos e os pesares da república, e que a língua, assim no sino para baixo, é a que há-de andar por baixo de tudo sem aparecer?”
 RELÓGIO DA CIDADE – “ Não, por certo, mas porque diz lá o provérbio que a nós outros , os Relógios, todos nos crêem e nenhum nos adora; por isso o pintor, agudamente pintando um Relógio às avessas, quis dizer que aos ministros, todos os adoram mas ninguém os crê”.
E a propósito de relógios e ministros, uma história com graça: um ministro meu amigo, dos poucos coerentes e verdadeiros que conheço do depois do 25 de Abril, apesar de esforçado implementador de obras, era, irremediavelmente, um eterno atrasado. Um dia em que devia presidir a uma inauguração, fora de Lisboa, fez esperar o motorista do carro oficial tempos sem fim, antes de partirem. O motorista, que vinha do “antigamente”, não deixou de lhe fazer sentir, discretamente, o seu desagrado e durante o percurso procurou, esforçadanente, recuperar o atraso, o que fez com que chegassem apenas uma escassa meia hora mais tarde do que o previsto. No largo da Câmara Municipal onde aportaram, o entusiasmo era grande : uma pequena multidão aos “vivas” , meninas do liceu, uma banda de música em alta grita,  bombeiros em farda de gala e tudo, levaram o meu amigo ministro a comentar para o seu motorista : “Oh Snr Salgado, isto até parece o “antigamente”! Resposta:”Não parece não, Snr Ministro, porque “antigamente” os ministros saíam a horas!”  
 Mudam-se os tempos – tempos vão, tempos vêm…  
A Vida é um Relógio onde o Tempo vai rodando. E o Ano -  seu Mostrador.
Novembro já vai no 11, quase a fechar o círculo, à beirinha do fim d’ ano. Mas nem por isso a Vida pára e o Relógio lá continua: TIC.TAC…TIC.TAC…TIC.TAC…    

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