sábado, 21 de maio de 2011

Maio, mês de Maria

por Maria Lúcia Garcia Marques               

Mês de Maio, mês de Maria.
Era assim na minha infância.
Minha Mãe rezava o terço todas as noites do mês com quem quisesse acompanhá-la. Eu sentava-me numa cadeirinha baixa, lá no quartinho dos fundos onde minha Mãe armara um pequeno oratório, e ficava a vê-la, na obscuridade recolhida, desfiando o seu terço de contas de vidro que balançavam suavemente ao movimento dos seus dedos lindos. A luz mansa duma lamparina de azeite punha reflexos ondulantes no rosto duma imagem de Nossa Senhora das Graças. Duas jarrinhas minúsculas com raminhos de gipsofila, dois candelabros de prata com suas velinhas de chama simétrica.
Não era um acto de adoração. Era um gesto simples de filial devoção, de piedade familiar, no verdadeiro e ancestral sentido que os romanos davam ao termo pietas e à celebração dos deuses lares.
Rezava-se pela paz – minha Mãe vivera as duas guerras mundiais – pela saúde da família, pelos estudos dos meninos, por alguma outra intenção mais particular (lembro-me de termos rezado pela vitória da equipa de que meu irmão era fã ...).
Terminava-se com a recitação da ladainha em louvor da Virgem Maria e ainda lembro o encantamento que algumas invocações deixaram no meu espírito infantil: mãe amável ..., virgem prudentíssima ..., rosa mística ..., torre de marfim ..., estrela da manhã ..., rainha da paz ...
No embalo da longa enumeração, éramos mulheres zelosas pelo bom fim de seus cuidados. Mulheres de trabalho nos seus diversos estatutos e idades. Na mesma cadência de deveres e de desejos que, bastante mais tarde, viria a encontrar nas palavras sofridas de Maria Velho da Costa, em Revolução e Mulheres (1976):
Elas são quatro milhões, o dia nasce, elas acendem o lume ...
Elas cantam baixinho a meio da noite a niná-los para que o homem não acorde ...
Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra ...
Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.
ELAS, sempre ELAS, na frente da luta, subindo e descendo a(s) “Calçada(s) de Carriche” deste mundo, nesse barómetro da vida d´ELAS que António Gedeão tão bem soube graduar.
ELA(S) – MARIA(S). O nome de mulher mais usado em Portugal. Que a História fixa: Marias – rainhas, Maria(s) da Fonte, Maria(s) Madalena(s). Ou que a linguagem popular aproveita: maria-rapaz, maria-cachucha, maria-mijona, maria-vai-com-as-outras, mariazinha-pé-de-salsa ...
E, a propósito desta última, uma historinha alegre que guardo no coração: era eu adolescente, magricela e “acneica”, vivendo no sobressalto de crescer e ser mulher (fundamentalmente apenas à espera de que dessem por mim ...), estreei umas meias novas, no “grito da moda”. Altas. Verdes-bandeira. Perna fina e pé ligeiro, livros abraçados ao peito, saia rodada apertadinha na cintura (verdadeiramente “de vespa” ...), lá ia eu rumo à lição de francês. Num passo corridinho – mai-las minhas meias verdes – pela borda do passeio. Foi quando cruzei um rapazola, “boina maruja ao lado/louca madeixa ao vento” (cito de cor Pedro Homem de Mello), que, de riso largo e olho aceso, me atirou: Olá, Mariazinha pé-de-salsa!
Ele vira as minhas meias de eleição! Indiferente se estava a gozar. Ele vira-ME ...!
Ainda hoje me rio de consolação!
Mês de Maio, mês de Maria, mês das Marias, e, já agora - porque não? - das mariazinhas-pé-de-salsa, que também são gente!

 Imagem de Nossa Senhora da Conceição, arte indo-portuguesa (Séc . XVII)

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