segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A Glicínia

Texto de Maria Lúcia Garcia Marques

Adriana sentou-se no murete. Não estava propriamente cansada. Estava apenas surpresa de não ter ainda sentido saudades daquele bem-estar que lhe vinha agora, envolto na brisa morna do fim da tarde, no deserto alentejano. Olhou em roda, placidamente, como sempre parece fazer-se tudo naquelas terras. Estava no meio do campo lavrado e o murete era um resto de uma conduta de água fora de uso, impecavelmente caiado, que corria pela linda do terreno até um velho poço entulhado e desesperadamente seco. No entanto, mão incógnita tinha posto um vaso com sardinheiras no rebordo do poço e o arco dos alcatruzes arruinados, ferrugento mas ainda altivamente no seu posto, parecia tutelar toda a paisagem, na segurança geométrica de que tudo começava e acabava como antigamente.
Adriana sentia o bafo da tarde na pele dos seus braços mal cobertos, mas embrulhava-se nele com um conforto e um afecto suave e leve, como se o dia parasse ali, naquela meia-luz requintada e lânguida. E a pouco e pouco, aquilo a que habitualmente chamava cansaço -  melhor dito, náusea do quotidiano entre paredes ( porque é preciso viver e viver tem os seus rituais e as suas burocracias) -  foi-lhe escorregando dos ombros e a respiração abriu-se-lhe ao cheiro poderoso da terra aberta, mas, levantando os olhos, também ao vôo das aves, essas ingénuas prègadoras da liberdade.
E viu também a glicínia. E devorou, como a abelha louca, o lilás da escadaria dos cachos. E encheu-se dessas lágrimas felizes que escorrem em glorioso pranto, em mágica cascata a esconder o soturno e sinuoso tronco. Cobrem-no, magnânimas, como tufos de seda, na maturidade da cor azulada, mas também na ridente juventude das suas flores ondulando na preguiça da tarde tépida.
E Adriana amou essa inesperada apoteose no ocaso que despontava e desvaneceu-se no seu fulgor devorador e mágico.


1 comentário:

  1. Querida Maria Lúcia,

    Que bonito que é! Todos os textos são belíssimos, mas este... Li-lo já três ou quatro vezes e hei-de vir cá encantar-me novamente!

    Um grande beijinho,
    Sofia

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