domingo, 29 de agosto de 2010

Saudade é

Fotografia e poema de M. Lúcia G.M.

Saudade é
o amor que resta
como o sol no fundo de um copo
a despedir-se da espuma
de um mar de verão
A saudade é líquida
e dourada
bebe-se como um sortilégio
que deixa sempre um fundo de ilusão

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Democracia, Liberdade de Imprensa e Sentido de Estado



Os governos – todos os governos – gostam do aplauso e detestam a crítica.

Os governos – todos os governos – gostariam de ter uma comunicação social mais colaborante e encomiástica.

Os governos – todos os governos – convivem mal com a liberdade de informação.

Mas só alguns governos são capazes de calar as vozes mais incómodas e mais críticas Fazem-no os governos dos países do terceiro mundo. Fazem-no os governos dos regimes ditatoriais. Num e noutro caso, com a violação dos direitos fundamentais daqueles que ousam criticar os “chefes”. Utilizando, em regra, a censura como arma e os mecanismos da repressão por polícias políticas como instrumento dissuasor.

Tentam também fazê-lo, por vezes, embora por outros métodos, alguns governantes em regimes democráticos. Nesses casos, quando mais duramente atacados através do exercício do direito à livre expressão, há governantes que soltam a sua indignação, que até pode ser compreensível ou mesmo justa, transformando-a, porém, em violentas censuras públicas, com utilização de expressões pouco próprias de quem governa.

Chamo a isso falta de “sentido de Estado”! Vou dar um exemplo.

O Presidente Richard Nixon foi um político profissional, experiente e bem sucedido em muitos aspectos. Negociou a retirada das forças dos Estados Unidos durante a guerra do Vietname, aproximou o seu país da República Popular da China e viajou até Moscovo, onde deu importante impulso às negociações com a União Soviética sobre a redução de armamento. Na política interna, travou dura luta contra a inflação, mediante o controlo de preços e salários e a redução dos gastos públicos.

Apesar disso, saiu humilhado da Casa Branca, na sequência do escândalo Watergate. Um aparentemente vulgar assalto a um edifício com esse nome, ocorrido em 1972, no período da campanha eleitoral que conduziu à reeleição de Nixon, esteve na origem de um escândalo político que acabou com a resignação do Presidente dois anos depois. O mérito da descoberta da verdade, ou seja, das ligações da Casa Branca ao assalto ao edifício Watergate e da descoberta de um sistema secreto de gravações, ficou a dever-se à persistência de dois jornalistas – Bob Woodward e Carl Bernstein – e à acção determinada e corajosa do seu jornal – o Washington Post. Nixon indignou-se, acusou a investigação, qualificando-a como infame e falsa, insultou os investigadores e o jornal. Ficaram célebres os seus acessos coléricos e a sua propensão para a utilização de vocabulário capaz de envergonhar um estivador. Negou, negou sempre a sua implicação e as suas responsabilidades.

Mas, dois anos volvidos, pouco antes da votação, pelo Congresso, do processo de impeachment que sobre ele pendia, viu-se obrigado a renunciar à presidência dos EUA. Ficou célebre a frase dramática que constituiu a sua última defesa: “I´m not a crook” (Eu não sou um vigarista). Na verdade, o Congresso, os tribunais e o procurador especial nomeado haviam feito prova das ligações da Casa Branca e do envolvimento do Presidente Nixon. Triste fim para um político inteligente, hábil, bem sucedido em múltiplos domínios, que não precisava do que aconteceu em Watergate para ser reeleito folgadamente contra o apagado candidato democrata George McGovern.

Faltava-lhe, porém, um atributo importante para um político: a compostura. E outro, fundamental para um líder: o sentido de Estado.

O sentido de Estado pressupõe respeito pelo cargo, sentido do dever, correcção, sobriedade, equilíbrio, ética pessoal. Em suma, o sentido de Estado implica aprumo e, sempre que necessário, capacidade de distanciamento em relação a companhias e amigos. Mas aqueles que me lerem estarão de acordo em que o que acabo de escrever deveria ter também plena aplicação neste nosso pequeno e pobre país.

domingo, 22 de agosto de 2010

A casa assombrada












Descobri-a num pinhal, solitária e pensativa. Cheirava, de longe, a abandono. Ao perto, a lixo húmido e suspeito. Na sua ruína, as janelas continuam porém como olhos fixos e vigilantes e a porta é uma boca aberta em O, como quem chama ou quem escarnece numa gargalhadinha infantil, meio curiosa.


Pelo flanco esquerdo sobe-lhe a escada, nítida mas cautelosa, a bater a uma porta-mistério. Cá fora, num poço entulhado a secura de uma água que se foi há muito. Mas, à direita, majestosos e tutelares, senhoriais guardiões na sua estatura imensa, dois cactos. Intactos e perfilados, protejem decerto um segredo ou um espírito vagabundo que ali se acolhe em noites desabridas. Não esqueci aquela casa e sei que um dia a vida lhe voltará, as janelas brilharão com vidrinhos de diamante e a porta fechar-se-á e deixará de dizer OH!


sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Políticos de "causas" e políticos de "interesses"

Acabo de ler um texto notável, da autoria de Luís Campos e Cunha, que chegou a ser, por quatro meses, ministro das Finanças de José Sócrates - cfr. "Público", 20 de Agosto, pág.33. Sob o título "VERGONHA", começa com uma afirmação, que não resisto a transcrever: "Há muita gente com vergonha da falta de vergonha que por aí impera". E termina do seguinte modo: "A justiça e a comunicação social têm um problema grave.O poder, em sentido lato, é dominado crescentemente por pessoas que não sentem nem têm vergonha. Os que ainda têm vergonha terão vida curta , no actual estado de vivência democrática".

Também eu, como o autor, tenho a percepção de que Portugal era menos corrupto há dez ou quinze anos do que é hoje em dia. E, fundamentando essa convicção, Campos e Cunha acrescenta: "Aliás, os indicadores internacionais de percepção da corrupção colocam neste momento Portugal numa situação vergonhosa. Por falta de vergonha de muitos agentes políticos".

Para já, limito-me a acrescentar o que me parece óbvio: no mínimo, exige-se de um estadista que respeite o juramento solene que proferiu no seu acto de posse e que respeite a Constituição, lei fundamental da República.

Mas a verdade é que se tem feito da política uma utilização perversa. Em vez de se “estar ao serviço”, o que conta é a perpetuação do poder e o favorecimento das cliques parasitas envolventes. Adopta-se a mentira como arma de combate e fabrica-se, nos gabinetes de imagem, uma marca postiça e hipócrita, capaz de enganar “tolos”.

São cada vez menos os políticos de "causas"; pelo contrário, germinam e multiplicam-se como cogumelos os "políticos de interesses" ou de "plástico". Por outro lado, desvalorizou-se um bem essencial e inestimável: o TRABALHO. Vive-se, cada vez mais, à sombra e na dependência dos padrinhos, na finança e nos partidos. Gente de bem, habituada a pensar pela sua cabeça, não quer misturar-se com esta "tralha triunfante" que, por aí milita... e enriquece. E o mais triste é que não se vê uma alternativa: se de um lado, chove, do outro troveja...

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

LIVRO VERMELHO II

O tema da "reeducação dos intelectuais" na China Vermelha, concebida e liderada pelo "Grande Timoneiro", o presidente Mao Zedong (Mao Tsé Tung), merece algumas considerações adicionais. Além de outras fontes, inspirei-me, ao escrever estas linhas, no belo romance do escritor sino-francês Dai Sijie "Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise", edições Gallimard, 2000. O pequeno texto que se segue dará notícia da sistemática e implacável repressão cultural exercida, sob a batuta dos grandes "educadores", instruídos pelos ensinamentos do "Livro Vermelho", contra quem quer que ousasse ter um pensamento próprio. A campanha, lançada nos fins da década de sessenta, pelo presidente Mao iria modificar profundamente a China. As universidades foram fechadas e os "jovens intelectuais", estudantes que haviam terminado os seus estudos secundários, foram enviados para a província, a fim de, na pureza da ruralidade, serem "reeducados" pelos camponeses pobres, seguidores fiéis e acéfalos das citações do Livro Vermelho".
A história relatada no romance gira em torno de dois jovens da cidade, de 17 e 18 anos, Luo e o narrador, que, em 1971, por serem considerados "intelectuais", foram enviados para as remotas "Montanhas da Fénix do Céu", na província de Sichuan, para serem reeducados pelo chefe da aldeia e pelos camponeses, gente rude, ignorante e afastada dos mais ténues sinais de civilização ou cultura. Luo era um notável contador de histórias, tendo, desse modo, caído nas boas graças do "chefe" e dos restantes montanheses. Entretanto, numa outra povoação, não muito distante, vivia uma jovem elegante e belíssima, filha do alfaiate da região. Trabalhava, ajudando o pai nas suas tarefas de corte e costura. Com naturalidade, Luo e a jovem modista apaixonaram-se e, sob os olhares desconfiados dos camponeses, passaram a manter um romance cada vez mais apaixonado.
Por sua vez, numa outra aldeia vizinha,  vivia um terceiro jovem, pesado e indolente, também sujeito ao regime de "reeducação", a quem os dois amigos chamavam o "caixa de óculos". Em troca de pequenos serviços prestados, o novo amigo comçou a ceder-lhes, por curtos períodos de tempo, sempre às escondidas, e apenas um de cada vez, alguns livros de Balzac.
Os dois amigos foram ficando cada vez mais desconfiados do conteúdo de uma mala que o "caixa de óculos" conservava sempre fechada, ciosamente resguardada de olhares estranhos. Resolveram, por isso, aproveitando a sua ausência, desvendar o seu conteúdo. E foi com a maior surpresa que depararam, no seu interior, com grandes títulos dos maiores nomes dos escritores do mundo ocidental: romances de Balzac,  Victor Hugo, Stendhal, Alexandre Dumas, Flaubert, Baudelaire, Rousseau, Tolstoi, Dostoievski, Gogol, e alguns de autores ingleses: Dickens, Kipling, Emily Bronté.
Que entusiasmo, que magia! "Com estes livros, a Pequena Costureira nunca mais voltará a ser uma simples montanhesa".
Seguiram-se tempos muito difíceis: a dura "reeducação" que, sob a cartilha inflexível do "Livro Vermelho", os dois amigos tiveram de suportar, deu causa a vicissitudes ultrajantes e desumanas, a violentas humilhações e torturas, a padecimentos físicos e psicológicos. Mas a tudo conseguiram resistir...
E o certo é que a leitura dos livros que, ainda assim, conseguiram escapar à purga dos "polícias da revolução" transformou a "pequena modista" numa mulher diferente: nasceu uma mulher liberta, disposta a conhecer o mundo, desejosa de abrir a vida e de alargar os horizontes, entreabertos, num primeiro momento, pelas palavras bebidas da boca de Luo e lidas, mais tarde, nas páginas mágicas dos livros "malditos". Não voltou a ser a mesma!  E foi esssa outra mulher, não mais inocente, mas, pelo contrário, curiosa e sedutora, aberta ao mundo e à sua tentação que, na hora da despedida, disse aos dois amigos: "Balzac fez-me compreender uma coisa: a beleza de uma mulher é um tesouro que não tem preço".

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Livro Vermelho

O nosso Presidente da República deixa-nos, por vezes, boquiabertos.
Com a sua personalidade "certinha" e professoral, tem tiradas de mestre-escola de província.
Vem isto a propósito da exortação que resolveu fazer, há dois ou três dias, pela televisão, com aquele ar sorridente, vagamente irónico, mas sempre solene, que o distingue, apelando aos comentaristas "estivais" (sic) a lerem o livro dos Doutores Vital Moreira e Gomes Canotilho sobre a matéria dos "poderes presidenciais". Levado por um entusiasmo quase febril pela "Constituição Anotada" dos dois Mestres de Coimbra, saiu-se com esta frase lapidar: "Esse era o livro vermelho dos meus antecessores e continua a ser o meu livro vermelho"! Passando agora por cima da publicidade descarada à obra dos referidos autores - no momento em que outros constitucionalistas de Lisboa (da UCP) acabam de lançar uma monumental 2ª edição ao seu 1º volume anotado da nossa Constituição, de um conjunto já publicado de 3 volumes, e em que também já contamos com um excelente comentário à "constituição  económica" coordenado pelo Doutor Paulo Otero (FDL) -, pergunto-me se Cavaco Silva conhece o sentido cultural e histórico normalmente associado à expressão "livro vermelho". Qualquer cidadão medianamente culto sabe que se trata da colectânea de citações do ex-Presidente da República Popular da China, Mao Tsé-Tung (427 citações divididas em 33 capítulos), tendo constituído uma forma de culto da sua personalidade.
O "livro vermelho" é o segundo livro mais vendido na história apenas atrás da Bíblia Sagrada, tendo tido cerca de 900 milhões de cópias impressas.
A sua enorme popularidade esteve ligada ao facto de o mesmo representar uma exigência para todos os cidadãos chineses, obrigados a possui-lo durante da Revolução Cultural, sendo obrigatória a sua leitura, nas escolas ou no mercado de trabalho, durante horas diárias. O símbolo de repressão em que se converteu fez milhares e milhares de vítimas entre os cidadãos chineses.
Com a subida ao poder de Deng Xiaoping, em 1978, a importância do "livro vermelho" entrou em franco declínio.
Pergunto: o que é que o nosso Presidente da República quis dizer ao afirmar que a obra dos constitucionalistas de Coimbra, ao menos, no capítulo respeitante aos poderes presidenciais continuava a ser o seu "livro vermelho"? E não terá sido um manifesto abuso pretender que também esse teria sido o "livro vermelho" dos seus antecessores António Ramalho Eanes, Mário Soares ou Jorge Sampaio? E não seria de esperar de um professor universitário uma particular aversão a argumentos de autoridade que, por definição, matam a discussão e o diálogo democrático?