O tema da "reeducação dos intelectuais" na China Vermelha, concebida e liderada pelo "Grande Timoneiro", o presidente Mao Zedong (Mao Tsé Tung), merece algumas considerações adicionais. Além de outras fontes, inspirei-me, ao escrever estas linhas, no belo romance do escritor sino-francês Dai Sijie "Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise", edições Gallimard, 2000. O pequeno texto que se segue dará notícia da sistemática e implacável repressão cultural exercida, sob a batuta dos grandes "educadores", instruídos pelos ensinamentos do "Livro Vermelho", contra quem quer que ousasse ter um pensamento próprio. A campanha, lançada nos fins da década de sessenta, pelo presidente Mao iria modificar profundamente a China. As universidades foram fechadas e os "jovens intelectuais", estudantes que haviam terminado os seus estudos secundários, foram enviados para a província, a fim de, na pureza da ruralidade, serem "reeducados" pelos camponeses pobres, seguidores fiéis e acéfalos das citações do Livro Vermelho".
A história relatada no romance gira em torno de dois jovens da cidade, de 17 e 18 anos, Luo e o narrador, que, em 1971, por serem considerados "intelectuais", foram enviados para as remotas "Montanhas da Fénix do Céu", na província de Sichuan, para serem reeducados pelo chefe da aldeia e pelos camponeses, gente rude, ignorante e afastada dos mais ténues sinais de civilização ou cultura. Luo era um notável contador de histórias, tendo, desse modo, caído nas boas graças do "chefe" e dos restantes montanheses. Entretanto, numa outra povoação, não muito distante, vivia uma jovem elegante e belíssima, filha do alfaiate da região. Trabalhava, ajudando o pai nas suas tarefas de corte e costura. Com naturalidade, Luo e a jovem modista apaixonaram-se e, sob os olhares desconfiados dos camponeses, passaram a manter um romance cada vez mais apaixonado.
Por sua vez, numa outra aldeia vizinha, vivia um terceiro jovem, pesado e indolente, também sujeito ao regime de "reeducação", a quem os dois amigos chamavam o "caixa de óculos". Em troca de pequenos serviços prestados, o novo amigo comçou a ceder-lhes, por curtos períodos de tempo, sempre às escondidas, e apenas um de cada vez, alguns livros de Balzac.
Os dois amigos foram ficando cada vez mais desconfiados do conteúdo de uma mala que o "caixa de óculos" conservava sempre fechada, ciosamente resguardada de olhares estranhos. Resolveram, por isso, aproveitando a sua ausência, desvendar o seu conteúdo. E foi com a maior surpresa que depararam, no seu interior, com grandes títulos dos maiores nomes dos escritores do mundo ocidental: romances de Balzac, Victor Hugo, Stendhal, Alexandre Dumas, Flaubert, Baudelaire, Rousseau, Tolstoi, Dostoievski, Gogol, e alguns de autores ingleses: Dickens, Kipling, Emily Bronté.
Que entusiasmo, que magia! "Com estes livros, a Pequena Costureira nunca mais voltará a ser uma simples montanhesa".
Seguiram-se tempos muito difíceis: a dura "reeducação" que, sob a cartilha inflexível do "Livro Vermelho", os dois amigos tiveram de suportar, deu causa a vicissitudes ultrajantes e desumanas, a violentas humilhações e torturas, a padecimentos físicos e psicológicos. Mas a tudo conseguiram resistir...
E o certo é que a leitura dos livros que, ainda assim, conseguiram escapar à purga dos "polícias da revolução" transformou a "pequena modista" numa mulher diferente: nasceu uma mulher liberta, disposta a conhecer o mundo, desejosa de abrir a vida e de alargar os horizontes, entreabertos, num primeiro momento, pelas palavras bebidas da boca de Luo e lidas, mais tarde, nas páginas mágicas dos livros "malditos". Não voltou a ser a mesma! E foi esssa outra mulher, não mais inocente, mas, pelo contrário, curiosa e sedutora, aberta ao mundo e à sua tentação que, na hora da despedida, disse aos dois amigos: "Balzac fez-me compreender uma coisa: a beleza de uma mulher é um tesouro que não tem preço".