Interior da Sé da Guarda
Nos verdes anos da minha instrução primária, quando frequentava a Escola do Asilo, na cidade da Guarda, confesso que tinha uma pequena vaidade, uma vaidadezinha ingénua mas irreprimível, quando me perguntavam qual a minha naturalidade. É que eu, ao contrário da quase totalidade dos meus colegas de classe, não tinha nascido na Guarda nem em qualquer das freguesias rurais do concelho. Eu era de Lisboa!
Passados poucos anos, quando, com os meus pais e o meu irmão, viemos viver para a capital (o que aconteceu nos meus 14 anos), fui modificando as minhas preferências e, iludindo a verdade do registo civil, passei a dizer-me natural da Guarda. É que Lisboa, belíssima capital pela qual nutro o maior carinho, é uma cidade que “é de todos mas não é de ninguém”. Não assim com a Guarda. Da Guarda são os que ali nasceram, mas também – o que é o meu caso – os que ali têm as suas raízes.
Na Guarda tinha o quintal, o leitura do “Cavaleiro Andante”, o frio do Inverno e a beleza dos poentes de Setembro. E tinha os meus livros, desde o “Pauvre Blaise”, da Condessa de Ségur, até aos “Salgaris”, aos “Júlios Vernes” e aos “Alexandres Dumas” e, depois, aos clássicos da nossa literatura, que lia apaixonadamente à sombra do castanheiro grande.
Na Guarda tinha a minha casa – um casarão da família, ao fundo da Rua 31 de Janeiro, então identificada como Rua D. Luís I. Era uma construção antiga, com um “pé direito” muito alto, fria e desprovida de aquecimentos, para além do proporcionado pela braseira da sala de estar, onde, no Inverno, se passava quase todo o dia, e pelo fogão de lenha, na cozinha.
O quintal era o meu reino. Além de muito extenso, tinha os mais variados motivos de interesse: o “barroco da moura”, a “mina” (que era, na verdade, uma nascente, à qual se acedia por um corredor estreito e praticamente subterrâneo), a pedreira, o tanque e a bomba de puxar a água, o pinhal e as giestas, os castanheiros e as variadas espécies de árvores de fruto. Ali passei, com os meus amigos, com o meu irmão e os meus primos dias muito felizes. Eram as lutas entre índios e cow-boys, eram as abordagens de flibusteiros e os combates de capa e espada, era o Ralph (pronunciávamos Rolfe), com o seu ar de galã juvenil dotado de uma natural destreza e elegância de gestos e movimentos a reproduzir os truques que tinha visto fazer ao Errol Flynn, no último filme passado no Cine-Teatro, eram os jogos de futebol.
Neste rol de boas memórias se me figura ainda hoje a Guarda, berço que me foi de uma infância acarinhada e feliz.