sábado, 30 de outubro de 2010

O Cavaleiro Andante



O “CAVALEIRO ANDANTE” faz parte integrante das minhas mais queridas recordações de infância e foi uma fonte de exaltação para uma boa parte dos jovens da minha geração. Tratava-se de uma revista juvenil em banda desenhada, de publicação semanal, dirigida por Adolfo Simões Muller. O seu primeiro número, com a capa, a quatro cores (amarelo, azul, vermelho e verde), representava precisamente um cavaleiro medieval montado no seu corcel, com armadura, elmo e escudo, de lança em punho,  preparando-se para a “justa”. Sucedeu ao “Diabrete” e foi publicado entre 5 de Janeiro de 1952 – ainda eu não tinha 10 anos – e  15 de Agosto de 1962, com 556 números publicados. Os meus primos mais velhos recordavam também com saudade o “Mosquito”, o qual, no entanto, já não fez parte das minhas leituras de menino.
Associo o meu encantamento com o “Cavaleiro Andante” à cidade da Guarda, uma vez que me acompanhou até aos meus 14-15 anos, isto é, durante os últimos 5 anos que ali vivi. Contemporâneo do “Cavaleiro Andante”, era também publicado o “Mundo de Aventuras”, mais virado para mundos inter-galácticos, aventuras espaciais e para histórias de índole psicológica ou hipnótica que não me tocavam tanto. Alguns dos seus heróis favoritos eram o Flash Gordon e o Mandrake.
Tive, com o meu amigo Raul Nobre, apreciador do “Mundo de Aventuras”, grandes e acaloradas conversas acerca dos méritos relativos das duas revistas. Cada qual ficou na sua e eu mantive-me fiel, desde o primeiro número, ao “Cavaleiro Andante”, onde predominavam as aventuras na “pradaria”, de índios e cowboys, as histórias de cavalaria e de cruzados, de corsários e de tesouros escondidos, assim como as heroicidades de Tarzan, as aventuras misteriosas do Professor Mortimer e do Capitão Edgar[1], em séries inesquecíveis de E. P. Jacobs, como “O Enigma da Atlântida”, “A Marca Amarela” ou “O Mistério da “Grande Pirâmide”, além das extraordinárias e encantadoras façanhas do repórter Tintim, do Rom-Rom[2] e do Capitão Rosa[3], cujo encantamento pudemos reviver, mais de cinquenta anos depois -, com a sua publicação por iniciativa do Jornal “Público”.
O “Cavaleiro Andante” saía ao sábado e o comboio que trazia os jornais de Lisboa chegava à Guarda um pouco depois das 14 horas. Os jornais eram, então, transportados por uma camioneta que fazia o percurso da estação até à cidade, onde chegava, correndo tudo normalmente, pelas 15 horas. A essa hora já eu esperava impaciente a chegada da viatura, junto da “central de camionagem” (para utilizar a terminologia de hoje), perto da Igreja da Misericórdia, no largo fronteiro à paragem dos táxis. Logo que avistava a camioneta, seguia, sem demoras, para o Café Mondego, infelizmente já desaparecido, onde, no meu tempo, havia, à direita de quem entrava, um espaço reservado para a venda dos jornais e das revistas.
Era importante ficar colocado logo na primeira fila, junto ao balcão, por detrás do qual imperava um velhote rabugento, que tinha por hábito cuspir regularmente para o chão, coberto com serradura, ao mesmo tempo que abria, com um estilete, os maços e pacotes com os jornais acabados de transportar num carrinho de mão. Depois, para endireitar e alisar os jornais e as revistas, batia fortemente com eles, por várias vezes, sobre o balcão, após o que os arrumava nas prateleiras, deixando no balcão as publicações mais procuradas: os jornais desportivos (“A Bola”, o “Mundo Desportivo” e o “Record”), o “Diário de Notícias” e o “Século” – e também o “Cavaleiro Andante”.
Logo que recebia o meu exemplar, a impaciência era tanta que não se compadecia com os cerca de 15 minutos de percurso a pé até minha casa. Sentava-me logo, chovesse ou nevasse, no banco mais próximo do jardim contíguo ao “Café Mondego”, onde folheava a revista e lia, em diagonal, os episódios cuja continuação mais me emocionava. Só depois seguia, em passo acelerado, para casa, onde, bem instalado no meu quarto, lia e relia com toda a atenção todas as aventuras da publicação.
Regularmente, no Natal e na Páscoa, saíam, para além da publicação semanal, números especiais. Eram álbuns temáticos que contavam uma história com princípio, meio e fim (em geral versões ilustradas de grandes romances de aventuras).
Ainda revivo o encantamento e, até, o fascínio com que devorava essas aventuras. Lembro-me de, um dia, ter querido compartilhar com o meu pai o prazer que me tinha dado a leitura de um desses álbuns, que tinha por título “O Último Mohicano”. Quando, no dia seguinte, o meu pai mo devolveu, perguntei se tinha gostado. E recordo a minha desilusão, quando o meu pai, afectuosamente, me respondeu: “Sabes, meu filho, estas histórias em quadradinhos  já não são propriamente para a minha idade”. Na verdura dos meus onze anos, intuí, se calhar pela primeira vez, que a vida dos adultos devia ser muito, muito “chata”.


[1] ) Nome dado nas edições do “Cavaleiro Andante” ao “Capitão Francis Blake”.
[2] ) No me dado no “Cavaleiro Andante” ao cão Milu, companheiro e amigo do Tintim.
[3] ) Nos originais de Hergé, “Capitão Haddock”.

domingo, 3 de outubro de 2010

1 de Fevereiro, o dealbar da República

Texto de M. Lúcia G.M.
publicado em 2008 a propósito do centenário do Regicídio 
 
Sou republicana, mas reconheço que resisto mal ao “charme discreto (nem sempre, mas enfim ...) da monarquia”. Se bem que – convenhamos – ela já não seja o que era, é, pelo menos, um estado de afecto. Tem algo de securitário na perenidade dos seus titulares; é uma espécie de “líquido amniótico” que, na transitoriedade histórica, parece dar coesão à geografia sentimental da Nação. A transmissão dinástica garante tempo histórico “com assinatura” e, quando funciona bem, dá um certo ar de família, em que a “paternidade” do Rei serve de ressalva e garante. E depois há o espectáculo! E aí, a monarquia é exclusiva e supera em glamour qualquer República. Quando se mostram, nas suas glórias e nas suas misérias, Reis, Rainhas, Príncipes e afins, são ilustrações vivas de um mundo em escaparate, escolhidos e escrutinados, pelo coração, por aqueles que, não partilhando da mesma estrela, de certo modo se revêm neles, ou melhor, se projectam neles como num conto de fadas, lugar de todos os brilhos e de todos os faustos. E, com a graciosa magnanimidade de parecerem não atender aos custos. Até que ...
Tem toda esta prosa a ver com as minhas ligações ao primeiro de Fevereiro de 1908. Honni soit ...!
É que, além de ter na minha posse, luxuosamente guardada numa pastinha de calfe, uma carta autógrafa da Rainha D. Amélia, datada de 1 de Fevereiro de 1933, a agradecer a homenagem prestada ao Rei D. Carlos na passagem do 25º aniversário da sua morte, lembro, estreitamente ligadas com esta efeméride, duas histórias da minha infância e família.
Foi assim:
Deslocando-me com frequência, no início da década de cinquenta, com meus Pais, a Elvas, era paragem obrigatória do nosso clã familiar Vila Viçosa, para visitar o Palácio Ducal. Pelo menos duas vezes por ano percorríamos a mansão senhorial que, à época, por falta de meios financeiros e até humanos, não possuía o actual apuro de instalações e recheio, fruto de felizes intervenções que de então para cá foi sofrendo e lhe restituíram o antigo brilho. Nessa época, era eu menina, o Palácio era devotadamente cuidado por um reduzido número de funcionários e os visitantes não eram muito numerosos. Chegou a acontecer, quando lá íamos pelo Natal, sermos só nós a percorrer os aposentos então abertos ao público, acompanhados por um guarda/guia, que, num tom quase familiar, nos ia mostrando um pouco de tudo, ilustrando a visita com algumas historietas ou curiosas anedotas relacionadas com os espaços e os seus régios habitantes.
Havia um ponto alto na visita: era quando, no quarto de cama da Rainha D. Amélia, evocando o regicídio, o guarda abria com solenidade um gavetão da cómoda e retirava a camisa que o “Senhor D. Carlos”  vestia na tarde do atentado. Mostrava um orifício no cós do colarinho, atrás, na nuca. E apontava: “Estão a ver aqui o buraco da bala? E o sangue aqui todo à volta? Não voltou a ser lavada ...” E, de uma vez, até acrescentou: “E afinal não é azul ...” E riu-se mansamente. Eu era muito pequena e não percebi aquela do azul. O que eu via eram umas manchas empastadas cor de chocolate à volta de um buraco que até não era assim tão grande! A mim parecia-me que deveria ser muito maior. Coisa que se visse ... Para matar uma pessoa assim tão importante como era um Rei ...! Mas que me impressionava, impressionava. E um dia, muito furtivamente, estendi o dedo, e toquei de fugida e ao de leve na dobra da camisa. Logo o guarda admoestou: “Isto não é para mexer, menina! É só para ver!” E guardou-a ciosamente, de novo, na gaveta da cómoda de onde a tirara. Não muito tempo depois deixaram de a mostrar e creio que não mais voltaram a fazê-lo.
No entanto, ainda hoje me parece sentir nos dedos aquele choque de curiosidade e susto de uma tão bárbara visão de morte.
Afortunadamente no mesmo quarto, instalado num desvão à cabeceira da cama da Rainha, brilhava (literalmente, porque era de latão amarelo com colchoaria e enfeites em seda e veludo azul claro) o berço dos principezinhos ... E a vida falava mais alto!
*
A segunda história tem a ver com meu Avô.
Meu Avô era republicano. Confesso, reconhecido e louvado a seu tempo. Mas era um homem de coração grande, aberto por natureza e profissão – era médico – aos outros, a todos os outros. Era compassivo e compreensivo. Só convivia mal com a  hipocrisia  e a estupidez. No resto, militava ardentemente pela tolerância e pela concórdia. Foi nesse espírito que falou aos manifestantes que o foram vitoriar a sua casa aquando da implantação da República, pedindo que não se cometessem excessos nem retaliações. Diz-se que teria sido por isso que, na sua cidade, onde avultavam das maiores carências sociais e económicas do País e uma classe operária das mais numerosas e reivindicativas, não tenha havido distúrbios, perseguições e outros atropelos de monta tal como aconteceu pelo País fora.
Mas meu Avô tinha os seus gostos e os seus padrões estéticos. E tinha um hábito sagrado: quando havia festa em sua casa ou razão de especial alegria ou comemoração, mandava hastear a bandeira nacional no varandim da sua residência. Só que, com a República, a bandeira mudou. E meu Avô passou a ter um problema: apesar de todo o feliz simbolismo que lhe reconhecia, não conseguia aceitar a solução estética da bandeira verde rubra. O seu coração ficara com a bandeira azul e branca. Era mais “distinta”, dizia ele.
Foi republicano até à morte, festejou sempre, portas a dentro, o 5 de Outubro e outros aniversários. Só a bandeira deixou de aparecer na fachada de sua casa.